“O HIV pode estar em meu sangue, mas a luta contra ele está em minha alma”

Confira cinco relatos de pessoas vivendo com HIV na Guiné; em 2023, projeto de MSF na capital do país completa 20 anos.

Em 2023, o projeto de Médicos Sem Fronteiras (MSF) que fornece cuidados para pessoas vivendo com HIV em Conacri, capital da Guiné, completa 20 anos desde sua abertura. Nas últimas duas décadas, MSF tem desenvolvido um trabalho fundamental para a implementação de novas abordagens médicas, por meio da mobilização da sociedade civil e do estabelecimento de esquemas inovadores de distribuição de estoques de medicamentos antirretrovirais. Ao mesmo tempo, trabalhamos para pressionar constantemente as autoridades e instituições doadoras a aumentar seus esforços para apoiar os cuidados relacionados ao HIV na Guiné.

• Confira: sete perguntas e respostas sobre HIV/Aids

A seguir, reunimos relatos de cinco pacientes vivendo com HIV. Eles falam sobre suas histórias e o progresso obtido nas últimas duas décadas no projeto de MSF. Embora o estigma associado ao HIV ainda seja alto, ele está diminuindo graças aos esforços de todos aqueles que mostraram que as pessoas que vivem com HIV agora podem ter vidas longas e saudáveis.

© Namsa Leuba

“O HIV pode estar em meu sangue, mas a luta contra ele está em minha alma.”
Aboubacar Camara
Educador de pares de MSF, educador comunitário e pessoa vivendo com HIV

Descobri meu diagnóstico em 9 de fevereiro de 2008. Eu nunca tinha ouvido falar dessa doença. Olhei para o papel [resultados do teste] e caí da cadeira. Estava fora de mim. O médico me prescreveu medicação para três meses.

Após três meses, comecei a melhorar. Quando minha receita venceu, não a renovei. Não queria que toda a cidade soubesse do meu diagnóstico, mas a doença piorou. Eu morava com meu tio na época. Normalmente, eu fazia as refeições com as crianças, mas logo percebi que elas começaram a me evitar. Eu estava sendo estigmatizado, discriminado.

Tentei suicídio duas vezes. Eu não tinha informações sobre o vírus. Foi o fim do mundo para mim.
Um dia, eu estava ouvindo um programa no rádio em que uma ativista, educadora de pares de MSF, falava sobre o HIV e seu diagnóstico. No final, anunciaram um número de telefone. Liguei e me encontrei com essa mesma ativista no dia seguinte. Ela sugeriu que eu me juntasse a uma organização comunitária, e eu aceitei. Encontrei conforto naquele grupo.

Ouvi dizer que MSF estava contratando alguém para falar publicamente sobre sua história na função de educador de pares. Eu estava disponível, então me inscrevi e fui contratado. Desde então, conto minha história publicamente. MSF me permite fazer isso. Foram feitos até alguns documentários sobre mim.

Foi assim que criei alguns dos meus slogans, como: “O HIV pode estar no meu sangue, mas a luta contra ele está na minha alma”.

• Leia também: após 25 anos, MSF conclui projeto de HIV/Aids no Malaui

© Namsa Leuba

“O estigma fazia parte do meu dia a dia.”
Diallo Maïmouna dite Mouna
Profissional que atua como ponto focal comunitário de MSF e pessoa vivendo com HIV

Eu tinha 18 anos quando me casei com um homem que não conhecia. Era um casamento arranjado, e ele era 10 anos mais velho do que eu. Notei uma erupção cutânea no corpo dele. Na época, eu não tinha ideia do que era. Uma dermatite seborreica devido ao HIV era a coisa mais distante que poderia ter passado na minha mente.

Após quatro anos de casamento, nos separamos. Uma década depois, me casei novamente. Foi quando descobri que meu primeiro marido havia morrido devido a complicações relacionadas ao HIV.

Pouco tempo depois, também adoeci. Na década de 2000, na Guiné, os médicos não eram treinados para tratar a infecção pelo HIV. Nenhum deles sabia o que eu tinha. Meu irmão mais velho me mandou para uma clínica na Inglaterra para fazer o teste. Quando meu irmão descobriu meu diagnóstico, ele não me contou. Mas compartilhou o diagnóstico com meu marido e minha família.

Quando voltei para a casa, me isolaram no meu quarto e compraram coisas novas para mim, para que eu não tivesse que pedir nada emprestado a eles. Um dia, voltei para minha casa e descobri que meu marido havia trocado as fechaduras. Ele me disse para voltar para minha família, onde me isolaram novamente. A doença continuou a se desenvolver. Perdi todo o meu cabelo, tive dermatite no rosto, perdi peso.

Minha família me levou para uma consulta com um médico que me disse que eu estava vivendo com o HIV. Minha vida passou diante dos meus olhos: o que eu tinha enfrentado, o comportamento do meu marido e da minha família…

Meu irmão e minha família me apoiaram financeiramente para que eu pudesse receber tratamento. Após muitos meses, minha condição melhorou e me recuperei, tanto que minha família, pensando que eu estava curada, achou que meu tratamento não era mais necessário. Felizmente, meu irmão conseguiu continuar me ajudando. Ele estava com medo de que eu tirasse minha própria vida. Foi em grande parte graças a MSF que os tratamentos finalmente se tornaram gratuitos na Guiné.

Foi o meu médico que me falou sobre as organizações comunitárias, e comecei a me voluntariar em um desses locais. Desde então, tenho lutado incansavelmente para que as pessoas não tenham que passar pelo que passei.

Em 2011, MSF sugeriu que eu me juntasse à sua equipe de educadores de pares, para falar e lutar contra o estigma. Tornei-me também uma das integrantes e fundadoras da REGAP+, uma rede nacional de associações de combate ao HIV/Aids na Guiné. Organizo testes, leio resultados, apoio os pacientes e trabalho para conscientizar as pessoas. Também recebi treinamento formal e participei de conferências internacionais.

Além disso, escrevi um livro, que foi traduzido para três idiomas e adaptado para uma versão infantil. Se eu tivesse essa riqueza de conhecimento e informações quando era mais jovem, provavelmente teria tido uma vida diferente.

O estigma fazia parte do meu dia a dia, tanto no meu bairro quanto na minha família. O nível de preconceito era muito alto na Guiné. Hoje, graças principalmente às organizações comunitárias, o estigma está diminuindo.

• Confira: quatro passos até a redução das taxas de HIV e tuberculose em Eswatini

© Namsa Leuba

“Hoje, tenho orgulho de ajudar as pessoas.”
Kadiatou Bodié Baldé
Presidente da REGAP+ (Rede de Associações de Pacientes Impactados pelo HIV, na sigla em francês) e pessoa vivendo com HIV

Eu me casei aos 13 anos, e meu marido faleceu um tempo depois. Fiquei doente durante 10 anos, mas não sabia o que estava causando isso. Ninguém falava sobre o HIV naquela época.

Mais tarde, me casei novamente e descobri que eu estava vivendo com HIV. Pronto. Eu não conseguia tirar isso da minha cabeça. Quando meu marido descobriu meu diagnóstico, ele me deixou e abandonou meus filhos também.

Encontrei MSF, encontrei um médico e encontrei organizações comunitárias, que me ajudaram a obter tratamento. O apoio que recebi de MSF, dos meus amigos e das organizações me salvou do trauma. Encontrei um emprego e pude cuidar dos meus filhos.

Casei-me novamente. Meus dois filhos nasceram sem HIV, graças ao programa de prevenção da transmissão de mãe para filho. Hoje, eles têm 9 e 13 anos de idade. Minha filha sabe que eu vivo com HIV e se tornou minha confidente.

Os níveis de estigma e discriminação são muito altos na Guiné, por isso as organizações comunitárias foram criadas. Fui presidente da Fundação Guiné Esperança e da REGAP+. Essas organizações ajudam os pacientes a obter cuidados psicossociais.

MSF me apoiou e nunca desistiu de mim. Percebi que poderia fazer algo com a minha vida e retribuir à comunidade. Hoje, tenho orgulho de ajudar as pessoas, de lhes trazer esperança e autoestima e de ajudá-las a encontrar o seu caminho. Quero agradecer a MSF pelo que fez pelo povo da Guiné nas últimas duas décadas. Espero que as autoridades estatais tornem a experiência de MSF própria, porque MSF é o padrão ouro e a liderança a seguir.

• Leia também: simplificando o autoteste de HIV em Eswatini

© Namsa Leuba

“Eu luto para defender as pessoas que vivem com HIV.”
Hassimiou Camara
Educador de pares de MSF e pessoa vivendo com HIV

Eu trabalhava como maquinista em 2005, quando meu chefe me chamou em seu escritório para me demitir porque eu ficava doente o tempo todo. Ele suspeitava que eu tinha Aids. Enquanto fazia o anúncio da minha demissão, meu chefe deixou a porta e as janelas abertas. Ele me dispensou após 24 anos de serviço. Eu fiquei furioso.

Pouco tempo depois, vi um comercial de MSF na televisão sobre os cuidados relacionados ao HIV. Fui fazer o teste e, quando recebi o resultado, fiquei chocado: positivo! Na época, HIV significava morte. Mas comecei meu tratamento. Seis meses depois, estava saudável novamente.

A estigmatização contra pacientes que vivem com HIV é forte na Guiné. As crianças do bairro costumavam vir na minha casa para assistir TV. Uma delas acabou me dizendo que os adultos as desencorajaram a me visitar porque eu estava com HIV. Mas não condeno aqueles que estigmatizam, isso é o resultado da desinformação.

Entrei para a Fundação Guiné Esperança e, em 2007, me tornei voluntário para falar abertamente sobre minha história. Eu luto para defender as pessoas que vivem com HIV, para dar esperança e coragem a elas. Eu ajudo quem tem medo do HIV. Conscientizo e tenho orgulho de liderar a mudança. Hoje, o estigma diminuiu e muitas coisas mudaram.

• Confira: 20 anos de cuidados gratuitos para o HIV/Aids na República Democrática do Congo

© Namsa Leuba

“Se você seguir seu tratamento, terá uma vida longa.”
Sagno Marie
Educadora de pares de MSF, ativista da sociedade civil e pessoa vivendo com HIV

Em 2002, meu marido e eu estávamos assistindo TV quando surgiu um comercial convidando as pessoas para fazer o teste de HIV. Meu marido sugeriu que fôssemos. Como éramos recém-casados, fiquei orgulhosa e fomos. Descobri que eu era uma pessoa vivendo com HIV e meu marido não. Pensei que ia morrer, que minha vida não tinha mais nenhum propósito.

Um ano depois, fizemos o teste novamente, dessa vez com MSF. Os resultados foram os mesmos. A principal diferença foi que MSF me deu orientações sobre como viver e aceitar a doença. Decidi que viveria positivamente, e MSF me apoiou nisso.

Depois de um tempo, meu marido disse aos pais dele que eu vivia com HIV. Foi quando o estigma começou. Como eu não tinha filhos, meus sogros queriam que meu marido se casasse com uma segunda esposa. Meu marido não me deixou. Ainda estamos juntos, e ele continua sem a infecção do HIV até hoje.

Eu me voluntariei para a organização Les amis de la santé (Amigos da saúde). Também fui integrante de outros grupos para pessoas vivendo com HIV, participei de treinamentos e estive envolvida nas atividades. Em 2010, MSF me recrutou como educadora de pares para conversar com a imprensa e incentivar as pessoas a fazer o teste.

Acho que é importante falar abertamente sobre o HIV para evitar a estigmatização. Se você seguir seu tratamento, terá uma vida longa.

 

 

 

Compartilhar
Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on print