“Quando vou perder o medo de entrar em uma casa novamente?”

Foto: Arquivo pessoal

Ionara Rabelo, psicóloga de MSF, compartilha experiência em resposta de emergência após terremotos na Turquia e na Síria.

A resposta de emergência aos terremotos na Síria e na Turquia não foi a minha primeira experiência como psicóloga em áreas afetadas por tremores. Em abril de 2016, estive também no Equador. O preparo para ir como primeira equipe de resposta após um terremoto inclui flexibilidade para se adaptar ao contexto. Em alguns pontos, não há eletricidade nem água. E como os tremores continuam a ocorrer, não é possível dormir dentro dos edifícios que não foram abalados, tampouco trabalhar nessas construções.

Para que possamos trabalhar o mais próximo possível das áreas afetadas, no projeto de emergência em resposta ao terremoto na Síria e na Turquia, nós dormimos em sacos de dormir que podem ser usados em barracas de acampamento ou em estufas para plantas que proprietários gentilmente nos cederam. As equipes também conseguiram deslocar rapidamente trailers de viagem ou containers com quartos e banheiros para que pudéssemos dormir e trabalhar.

Preparávamos nossa comida com as compras que conseguíamos fazer em cidades menos afetadas pelo terremoto. Dentro do trailer, acordávamos várias vezes durante a noite, pois era muito fácil sentir os tremores que continuavam a abalar a região.

Rapidamente, aprendemos com as comunidades a verificar o site que acompanha os tremores pelo mundo. Víamos vários colegas olhando e confirmando, a todo momento, onde ocorriam mais tremores. Algumas vezes, estávamos no meio de uma capacitação, e alguns colegas se levantavam com a intenção de correr após ouvirem algum estrondo ou mesmo por sentirem tremores – mesmo que esses não estivessem ocorrendo.

Tínhamos um ponto de encontro com as equipes em uma área aberta onde os trailers estavam estacionados, próximo ao que chamamos de base. São diferentes idiomas e sotaques dizendo “bom dia”, “good morning” (inglês), “günaydın” (turco), “sabah alkhayr” (árabe), “bonjour” (francês). Algumas pessoas me pediam para ensinar cumprimentos em português, e eu aproveitava para aprender como começar o dia em outros idiomas.

Olhávamos no mapa os acampamentos que precisávamos visitar. Preparávamos os materiais que precisávamos levar. Dividíamos as equipes, pegávamos água e saíamos para retornar apenas próximo ao anoitecer. Buscávamos as regiões e os vilarejos mais distantes dos centros das cidades, pois sabíamos que lá estavam as pessoas com mais necessidades de cuidados de saúde. As equipes distribuíram vários materiais essenciais para atender as necessidades básicas da população e providenciaram a construção rápida de banheiros e pontos de distribuição de água potável nos acampamentos que visitamos.

As equipes de atenção psicossocial e saúde mental eram capacitadas diariamente, com o objetivo de alinhar as estratégias mais adequadas ao cenário encontrado. Quando chegamos ao primeiro acampamento, nos apresentamos e pedimos para falar com as pessoas responsáveis pelo local. Em alguns espaços, porém, ainda não havia a organização por representantes, então pedimos autorização para conversar um pouco sobre o nosso objetivo lá e entender as principais necessidades, para alertar nossas equipes ou acionar outras organizações.

Faltava água para cozinhar, beber e não havia banheiros. Crianças e adultos começaram a apresentar escabiose*. Faltavam roupas de frio, cobertores, fraldas descartáveis, absorventes femininos, remédios que pacientes já tomavam para doenças crônicas, materiais para curativos simples, lenha e produtos para preparar alimentos. Ao caminhar pelas ruas e escombros, nós começamos a nos deparar com tendas improvisadas, entulhos, poeira, lixo espalhado e animais entre as tendas. As crianças corriam pelas barracas, muitas pessoas em idade avançada, sentadas, olhavam o vazio, e mulheres e homens tentavam organizar minimamente o novo espaço onde viviam, mesmo que de forma temporária.

Enquanto algumas famílias tentavam permanecer perto do lugar onde viviam antes do terremoto, outras se moviam para cidades menos afetadas e buscavam espaços seguros para montar barracas. Muitas crianças tentavam falar comigo e me ensinar palavras. Elas riam do meu sotaque e, toda vez que descobriam de onde eu vinha, começavam a dizer nomes de jogadores de futebol.

Muitas mulheres se sentaram para conversar comigo e compartilhar os momentos de horror quando suas casas desabaram durante o terremoto. Elas contaram sobre como agarraram os filhos para correr no escuro, que não enxergavam nada e que fazia muito frio naquela noite. As mulheres relataram que as crianças choravam muito e que elas se angustiavam para encontrar todos os familiares. Quando conseguiram sair dos escombros, queriam voltar para ajudar os vizinhos. Ouviam seus gritos e ficavam divididas entre a vontade de voltar para os entulhos e ajudá-los e a necessidade de manter os filhos próximos e em segurança.

Como psicóloga, ouvi e me emocionei com a capacidade de enfrentamento que essas famílias construíram. Em nossas sessões, procurei validar esses sentimentos ambíguos e demonstrar empatia, compartilhar algumas orientações sobre como lidar com as reações dos filhos. Mas, no fim do dia, vinha a sensação de que ainda é tão pouco. Serão anos até que essas cidades, comunidades e famílias possam reconstruir a noção de espaço seguro para viver.

Muitas pessoas revelaram que, mesmo precisando ir ao posto de saúde, não tinham coragem de entrar na construção. Às vezes, alguns vizinhos ofereciam o banheiro, mas para eles, o medo constante de um novo tremor era aterrador. As pessoas recebiam a orientação para nunca fecharem as portas, pois qualquer abalo poderia impedir a saída deles de casa. A mesma casa que abriga se transforma em espaço que mata. E essa pergunta nos era feita diariamente: “Quando vou perder o medo de entrar numa casa novamente?”.

Não há período medido numa escala de tempo que assegure quando o medo vai passar. Isso depende das experiências anteriores de cada pessoa, depende da sua rede de apoio, depende da capacidade da comunidade de se organizar e ter gradativamente o senso de controle sobre suas atividades de rotina. Cada história, medo, dor e luto será processado de maneira distinta. Cabe a nós, profissionais que respondem às emergências humanitárias, sermos rápidos para chegar, atender às necessidades básicas e apoiar a comunidade. Ouvir, partilhar, pedir apoio de outros atores, organizar atividades para crianças e jovens, grupos com homens e mulheres e construir esperança. Cada dia parece que valeu por uma semana, o tempo nem pode ser medido por horas. É difícil medir a imensidão de necessidades que nos invade após um desastre com essas dimensões.

*Escabiose (ou sarna) é uma doença contagiosa causada por um parasita que escava túneis sob a pele, causando coceira intensa e erupção cutânea.

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