Cuidar de quem cuida

Foto: Arquivo pessoal

Adriana Moura, psicóloga de MSF que ofereceu cuidados de saúde mental para profissionais do SUS, explica a importância desse tipo de atuação após desastres socioambientais.

Sou psicóloga e estive na Bahia e em Pernambuco no primeiro semestre de 2022, atuando após as enchentes que ocasionaram mais de 140 mortes e milhares de desabrigados nos dois estados. Ao iniciar o trabalho, encontramos as equipes de saúde em processo de adoecimento, com cansaço permanente, falta de memória e alteração no sono.

Para enfrentar essa situação, nosso apoio aos profissionais da linha de frente ocorria de diferentes formas: levando escuta e acolhimento, compartilhando informações técnicas de como trabalhar em cenários de desastres e atuando com advocacy, o que neste caso significava levar as dificuldades vividas pelos profissionais aos responsáveis pela gestão do município. Médicos Sem Fronteiras (MSF), por ser um agente “neutro” no território, desempenha bem esse papel.

Muitos desses profissionais sofreram um impacto duplo da tragédia. Primeiro, porque a maioria deles mora nos locais e, por isso, muitos perderam suas casas e entes queridos. Depois, enquanto equipe de saúde, eles perderam também seu local de trabalho, os prontuários e instrumentos médicos.

Muitas vezes, as capacitações/formações aconteciam na unidade de saúde na localidade atingida pela tragédia e, assim, podíamos observar a devastação do espaço físico. Muitas vezes havia muito entulho, lama, falta de materiais e de estrutura para atuação.

Em Pernambuco, o projeto emergencial de MSF teve duração de 60 dias, sendo que eu estive no projeto durante 30 dias. A rotina era de oferecer as formações pela manhã e à tarde. Essa rotina era bem corrida. Cedo, eu já organizava o material dos treinamentos, conferia a quantidade de participantes e o endereço. A cada encontro entregávamos aos participantes material de apoio e um lanche simples. Tudo isso com muito cuidado, porque havia medidas de proteção contra a COVID-19. Tínhamos que incluir também, durante a rotina, momentos de planejamento e para produção de relatórios.

Atuamos com apoio e capacitação em saúde mental para os profissionais de saúde, assistência social e também com lideranças comunitárias, oferecendo treinamentos que são praticados em contextos de catástrofe socioambiental. Grande parte da atuação ocorreu com os agentes comunitários de saúde que também são líderes em seus territórios.

Foto: Arquivo pessoal

Vários momentos me marcaram. Vou citar aqui uma agente comunitária que perdeu mais de 10 pessoas de sua família. Ela queria voltar a trabalhar para poder se ocupar e esquecer um pouco o sofrimento, mas não estava com estrutura emocional. Nosso encontro, que tinha como objetivo acolhimento e formação, foi um espaço que proporcionou a ela compartilhar os desafios que estava enfrentando e receber escuta e cuidado.

E percebemos que o resultado do nosso trabalho fez com que nosso esforço valesse a pena e deixasse frutos. Conseguimos capacitar mais de 800 profissionais em Pernambuco e manter um diálogo com seus gestores, mostrando a necessidade do cuidado com a saúde mental desses profissionais. Após a capacitação, os municípios onde atuamos iniciaram um fluxo para que os profissionais de saúde tivessem espaço para dialogar sobre essa pauta, que frequentemente é invisibilizada.

Foram projetos que levaram acolhimento e informações técnicas para os profissionais de saúde. Isso é de grande relevância, porque após um evento catastrófico a comunidade local perde sua capacidade de resposta e, muitas vezes, precisa de ajuda externa para atuar e estabelecer uma rotina de cuidados.

Quando o território começa a organizar sua capacidade de resposta, os profissionais de saúde não entram como prioridade e vão acumulando uma carga de estresse grande, têm uma cobrança dupla (comunidade e gestão), sendo que também foram impactados pelas chuvas. Durante o trabalho em Pernambuco e na Bahia, tive o privilégio de contribuir na atuação de MSF para contemplar esses profissionais. Ficou evidente para mim que os treinamentos, capacitações e acolhimentos acabaram fazendo toda diferença, porque também é preciso cuidar de quem cuida.

Compartilhar
Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on print