Entre o escritório e a prática no projeto: uma experiência em Advocacy

Amanda Longhi, analista de Assuntos Humanitários de MSF, conta como sua experiência no escritório brasileiro da organização ajudou em sua atuação como gestora de Advocacy no Sudão do Sul.

Trabalhar em Médicos Sem Fronteiras (MSF) sempre foi um desejo, mas eu também carregava um sonho de ir para projetos fora do Brasil. Em minha trajetória na organização, busquei me capacitar para que pudesse chegar a atuar como uma profissional internacional móvel, apesar de também gostar de minhas atividades junto ao escritório em nosso país. São duas experiências bem diferentes, mas ambas se complementam, e isso foi o mais incrível para mim.

De maneira simples, o trabalho de Advocacy consiste em interagir com diversas instituições e atores relevantes para que possamos ter o melhor entendimento possível dos contextos onde atuamos, traçar estratégias e promover ações que sejam do interesse de nossos pacientes. Respeitando os princípios de MSF de neutralidade, imparcialidade e independência, buscamos influenciar os principais atores através do observado pelas equipes de MSF em campo e de dados de nossos projetos para gerarmos mudanças positivas que impactarão/trarão benefícios/beneficiarão diretamente as populações com as quais atuamos.

No escritório de MSF, em minha função de Advocacy, procuramos dar apoio aos projetos de MSF no Brasil e possíveis respostas emergenciais, incluindo visitas para avaliar as necessidades de atuação da organização em determinado local. Além disso, trabalhamos com a defesa de alguns temas relevantes para a organização, como as Doenças Negligenciadas. Nosso dia-a-dia envolve muita pesquisa, mapeamento de atores envolvidos nas temáticas com as quais estamos trabalhando e a busca por influenciar esses atores para que mudanças positivas aconteçam. As melhorias que queremos que ocorram vêm a partir do que é observado pelas equipes de MSF no trabalho direto com diversas populações com as quais atuamos. Por exemplo, algumas vezes nosso propósito é garantir melhora no acesso à saúde de uma determinada população, já em outros momentos queremos observar a implementação ou a alteração de uma política de cuidados de saúde para uma doença específica. No Brasil, temos interlocução com as autoridades públicas competentes e também atores da sociedade civil.

Meu trabalho no projeto de MSF no Sudão do Sul como gestora de Advocacy me apresentou uma outra vivência. O Sudão do Sul é o país mais novo do mundo, o que faz com que as instituições governamentais sejam também muito novas e de certa forma menos consolidadas. Além disso, após a independência, o Sudão do Sul passou por duas guerras civis cujas consequências são até hoje visíveis nas edificações, estradas e falta de infraestrutura, mas também estão presentes no dia a dia da população e na memória de todas e todos de uma forma ainda muito vívida. Precisamos considerar que a última guerra civil se encerrou apenas em 2018. Nesse contexto, há uma estrutura de resposta humanitária muito grande no país que busca atender às necessidades ainda crescentes – segundo o escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), em 2023¹, estima-se que 9,4 milhões de pessoas precisarão de ajuda humanitária no Sudão do Sul, em uma população de 12,4 milhões de pessoas (2022²).

No Sudão do Sul, os desafios impostos foram vários. Talvez um dos maiores tenha sido o fato de que, três semanas após a minha chegada à coordenação dos projetos, tivemos que atuar em uma resposta de emergência. As inundações que afetavam (pelo terceiro ano seguido) a área de Bentiu, no estado de Unity, na região norte do país, tomaram grandes proporções, vistas anteriormente apenas nos anos 1960. Naquele momento, tudo que estava em andamento nas atividades de Advocacy teve que ser revisto para dar suporte à equipe de Bentiu. Nossos objetivos eram urgentes para evitar, por exemplo, um surto de cólera. Lá, era comum eu trabalhar em temas e situações diferentes todos os dias e em questões que exigiam mudanças rápidas e não tanto de médio e longo prazo. É claro que queremos também as mudanças de longo prazo, mas as necessidades eram tantas que não se podia pensar no longo prazo sem antes garantir o mínimo para as populações naquele momento.

Eu aprendi um outro mundo de Advocacy com a prática no Sudão do Sul. O trabalho era mais imediato e muito mais no âmbito humanitário, e não apenas da saúde, quando comparado àquele que estava acostumada no escritório de MSF-Brasil, que, em geral, tem objetivos de mais longo prazo e está conectado a questões no âmbito da saúde. Esses elementos ampliaram meu horizonte, me incentivaram a pensar diferente e a abrir novas possibilidades. Esse pensamento alternativo e criativo, buscando soluções diversas em meio às adversidades, é essencial para o trabalho de Advocacy seja onde for.

Ao mesmo tempo, minha experiência no escritório me possibilitou contribuir muito com os projetos no Sudão do Sul. Uma vez que a missão é pensar diferente, ainda que seja muito difícil, ter trabalhado com Advocacy anteriormente no escritório e em outro contexto me possibilitava trazer ideias e sugestões novas. Como mencionei anteriormente, no Sudão do Sul é complicado montar ações a médio e longo prazo. As respostas das autoridades locais aos nossos pedidos podem demorar bastante e nem sempre o país tem recursos para implementar ações. Um exemplo que evidenciará isso é o orçamento do Ministério da Saúde do Sudão do Sul para o país inteiro, que era menor que o orçamento de MSF³ para o país. Por isso, acabamos priorizando como atores-chave outros agentes humanitários e agências do Sistema das Nações Unidas (ONU), que em geral conseguem ter um tempo de resposta mais curto.

Ademais, essa ponte (escritório-projeto) também me possibilitou entender muito mais sobre o funcionamento e a estrutura de MSF. Sem dúvidas, a minha experiência no escritório me qualificou muito para o que apresentei no projeto. Esse intercâmbio é super bem-vindo e muito interessante. São mundos diferentes, mas mundos que se complementam, e é por isso que a gente trabalha aqui, trabalha lá e em tantos outros contextos. No fim, os dois mundos são Advocacy. O que queremos é garantir que mudanças positivas sejam de médio e longo prazo, de forma mais estrutural e em termos de políticas públicas, assim como as mudanças rápidas e por vezes pequenas, que também são extremamente relevantes. E tudo reflete a missão da organização, de oferecer cuidados de saúde a populações negligenciadas e chamar a atenção para o que nossos pacientes enfrentam.

 

¹ Fonte: South Sudan Humanitarian Needs Overview 2023 (November 2022) https://reliefweb.int/report/south-sudan/south-sudan-humanitarian-needs-overview-2023-november-2022?_gl=1*1c41tce*_ga*MTYyNTE0MDIzOC4xNjc4Mzg3Mzg2*_ga_E60ZNX2F68*MTY3ODM4NzM4Ni4xLjAuMTY3ODM4NzM4Ni42MC4wLjA.
² Fonte: Idem, p. 8 e 12.
³ Em 2021, o orçamento de MSF no Sudão do Sul foi de 80 milhões de euros (Fonte: Relatório Internacional de Atividades 2021, p.14). O orçamento do Ministério da Saúde para 2021/2022 foi de 67 milhões de dólares, aprovado na Assembleia.

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