Não há tempo a perder para proteger vidas vulneráveis no Sudão

Por Stephen Cornish, diretor-geral de MSF na Suíça.

Foto: MSF ‌

Se você acha que os eventos no Sudão agora são uma emergência sem aviso prévio, pense novamente.

O conflito atual é, em vez disso, um sintoma agudo de uma crise que atormenta o país há décadas. A população do Sudão vem sofrendo há muito tempo com a turbulência política e a instabilidade econômica. As crescentes necessidades humanitárias deixaram muitos sudaneses em “modo de sobrevivência”.

Assista: Conflitos no Sudão ameaçam a população e restringem serviços médicos

Veja também: Coordenador de emergência de MSF fala dos desafios do trabalho no Sudão

Somente no ano passado, as necessidades humanitárias atingiram seus níveis mais altos em uma década, com conflitos violentos e insegurança alimentar entre os muitos desafios que as pessoas enfrentaram. Além disso, grandes inundações mostraram a vulnerabilidade do país a padrões climáticos em rápida mudança. A situação foi ainda mais agravada pelo aumento dos confrontos entre grupos armados nos estados de Darfur, Kordofan e Nilo Azul, que deslocaram mais de 3 milhões de pessoas – quase 2,5 milhões delas apenas em Darfur.

Além disso, o Sudão também recebeu mais de 1 milhão de refugiados de países vizinhos, como o Sudão do Sul e a Etiópia, que fugiram da violência e agora se deparam com outro conflito, o que afeta ainda mais a capacidade dessas pessoas de lidar com a fuga da pobreza extrema e da morte.

Antes do conflito atual, nossas equipes haviam alertado para as necessidades críticas das pessoas em Darfur Ocidental, enfatizando a urgência de ampliar a resposta humanitária ao já frágil sistema de saúde. Agora, nossas equipes testemunharam o colapso do sistema de saúde e os níveis crescentes de necessidades médicas e humanitárias em todo o país, colocando um grande número de pessoas em uma situação de risco de morte. A ONU (Organização das Nações Unidas) estima um aumento de 57% nas necessidades humanitárias no Sudão em relação a dezembro de 2022.

Pacientes chegando ao Hospital Bashair, em Cartum, capital do Sudão. Maio de 2023. Foto: Ala Kheir/MSF

Desde o dia 15 de abril, as pessoas em Cartum e em outras cidades sofreram por causa de intensos conflitos, ataques aéreos e saques em massa. Outra onda de deslocamento, de 1,4 milhão de civis, está sendo reportada pela ONU, com mulheres e crianças particularmente afetadas.

A violência atual levou à escassez de alimentos, água, medicamentos e combustíveis, fazendo com que os preços subissem e dificultando cada vez mais o acesso das pessoas aos cuidados médicos no momento em que mais precisam.

Em Cartum, El Geneina, Zalingei e em outras cidades e vilarejos onde os intensos conflitos continuam, os moradores permanecem encurralados. Muitas centenas de milhares de pessoas estão fugindo para áreas mais seguras do país ou através das fronteiras com outros países.

Apesar dos imensos obstáculos, continuamos determinados em nosso compromisso de apoiar da melhor maneira possível as pessoas do Sudão, fornecendo cuidados de saúde essenciais para aqueles com necessidades urgentes.


Atendimento com clínicas móveis em Wad Madani, Sudão. Junho de 2023. Foto: Wad Madani/MSF

Nossas equipes estão atuando em 10 estados do Sudão, envolvidas em várias atividades, como tratamento de feridos em Cartum e Darfur do Norte; fornecimento de serviços de saúde e água e saneamento a refugiados, pessoas deslocadas e comunidades locais nos estados de Al-Gedaref e Al-Jazeera; e doação de suprimentos médicos para instalações de saúde em todo o Sudão.

“Muitas vidas estão em risco, e não podemos ficar parados enquanto isso.”

No entanto, tem ocorrido um padrão de ataques a instalações de saúde e um desprezo pela vida de civis que tornam cada vez mais difícil para MSF fornecer serviços de saúde vitais durante este período crítico. Por exemplo, em Nyala, no sul de Darfur, fomos forçados a suspender as atividades depois que um de nossos complexos e depósitos foram violentamente saqueados em 16 de abril.

Em Cartum, outro depósito também foi saqueado e ocupado – suprimentos médicos, combustível e veículos foram roubados. As geladeiras foram desconectadas, e os medicamentos foram deixados expostos no chão, o que significa que não podem mais ser usados.

Em 26 de abril, o Hospital Universitário El Geneina, onde MSF administrava os setores pediátrico e de nutrição, também foi saqueado. Partes do hospital foram danificadas ou destruídas. A instalação permanece fechada desde o ataque.

O roubo de suprimentos e veículos, a intimidação contra profissionais médicos e a proximidade da violência às instalações de saúde impedem coletivamente os esforços dos profissionais médicos e humanitários em responder efetivamente à situação, que é terrível.

Esses ataques não são incidentes isolados específicos de MSF. Na verdade, são indicativos de um padrão mais amplo em que as partes beligerantes demonstram desprezo por vidas civis, pela infraestrutura e instalações de saúde. Essa tendência representa uma séria ameaça à prestação de serviços médicos essenciais e exacerba as condições já desafiadoras enfrentadas pela população afetada.

Os desafios administrativos e logísticos também estão impedindo as atividades médicas de MSF. Transferir suprimentos de uma região do Sudão para outra pode ser extremamente difícil. Da mesma forma, embora MSF tenha conseguido trazer equipes de emergência para o Sudão durante as primeiras semanas dos conflitos, desde então tem sido desafiador obter permissão para viajar para locais onde temos projetos ou garantir vistos para profissionais adicionais.

“Não posso deixar de me perguntar quantas vidas que poderiam ter sido poupadas estão sendo perdidas neste exato momento.”

Como podemos continuar realizando nossas atividades sem um nível aceitável de proteção para nossa equipe e para as pessoas que não conseguem chegar às instalações médicas devido a ameaças constantes? Como podemos obter um nível de acessibilidade de nossos suprimentos e equipes para mover e entregar ajuda?

A partir de nossa experiência humanitária em zonas de conflito, sabemos a escala de perigo que essa situação representa para os civis que não podem ou optam por não ir embora, incluindo a equipe médica que permanece no Sudão para prestar assistência às pessoas com ferimentos e outras questões de saúde.

Anestesista da equipe cirúrgica de emergência de MSF prepara paciente para extração de bala no Hospital Bashair, em Cartum. Maio de 2023. Foto: Ala Kheir/MSF

As partes em conflito precisam tomar todas as medidas necessárias para proteger os civis de danos e garantir que aqueles que estão doentes, feridos ou em extrema necessidade de apoio médico tenham acesso a instalações de saúde.

Enquanto escrevo minhas palavras finais, não posso deixar de me perguntar quantas vidas que poderiam ter sido poupadas estão sendo perdidas neste exato momento.

Diante do conflito em curso e dos ataques aos cuidados de saúde em vários locais, é imperativo garantir a segurança dos profissionais e das instalações de saúde para assegurar uma prestação de cuidados médicos eficaz. Isso implica permitir a passagem segura para ambulâncias e indivíduos que procuram assistência médica, assim como facilitar o acesso e o movimento rápido e desimpedido de profissionais humanitários, organizações e suprimentos para que cheguem onde são necessários.

Muitas vidas estão em risco, e não podemos ficar parados enquanto isso. É vital que os civis afetados pelos confrontos tenham acesso a cuidados de saúde de emergência.

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