Refletindo a experiência humana da guerra

Psicóloga de MSF conta sua experiência trabalhando em Sanliurfa, na Turquia, com refugiados sírios

Refletindo a vivência humana da guerra

Acabo de voltar da Turquia, da minha primeira atuação em campo com Médicos Sem Fronteiras (MSF), por 4 meses. É difícil dizer o que é mais impactante numa experiência de trabalho humanitário realizado numa região tão próxima ao cenário de guerra, como é o caso da fronteira com a Síria, onde eu estive. Mas se tivesse de escolher algo para falar a respeito, seria o testemunho da vivência humana da guerra.

Anestesiados pelas notícias que vemos diariamente na TV e nos jornais sobre uma guerra fisicamente tão distante e que já dura tanto tempo, tendemos a perder a sensibilidade para com esse tipo de sofrimento, vendo-o quase como um filme de ficção, que não sentimos como real porque não acontece no nosso país ou com a nossa comunidade. Ou ainda tendemos a pensar a guerra apenas como fenômeno “desumano”, pelas óbvias tragédias que provoca, sendo tentador considerar que, onde falta humanidade, não há nada que nos diga respeito.

A mim, pessoalmente, foi somente estando ali, no meio da comunidade afetada, ouvindo e observando as pessoas e suas histórias particulares, convivendo com turcos, curdos e sírios, fazendo parte do seu dia a dia, vivendo as suas culturas, é que pude sentir um pouco do impacto que a guerra exerce na vida das pessoas, social e psicologicamente. E a guerra, essa que destrói drasticamente comunidades inteiras, é, sim, realizada por humanos; é real e nos diz respeito.

Acho que essa é a parte mais difícil de perceber e aceitar. Ser testemunha ocular disso só é possível estando em campo. Antes de refletir o que é possível fazer com esse testemunho, quero transportá-los, ainda que virtualmente, para Sanliurfa, cidade que fica no sudeste da Turquia, a cerca de 60 quilômetros da fronteira com a Síria, onde fica a base do projeto de atenção psicossocial e saúde mental para refugiados apoiado por MSF em parceria com as ONGs locais Support to Life e International Blue Crescent. Tive a grata experiência de morar ali por 2 anos pois já trabalhava na área humanitária, tendo trabalhado com a equipe de MSF nos últimos 4 meses.

Sanliurfa é uma cidade de interior cuja base econômica principal é agrícola, e nessa época do ano tem os seus campos cobertos de algodão como um manto branco, intercalados por terreiros cheios de pimenta-vermelha para secar e fazer tempero. Para além da imagem bucólica, são nesses locais que muitos refugiados – homens, mulheres e crianças – encontram trabalho sazonal para sobreviver aos tempos difíceis. Na estrada para a visita aos projetos, ao ver os vários caminhões lotados de fardos pesados de algodão que escoam a produção todos os dias, imagino quantas crianças crescerão com a memória e as marcas de terem trabalhado nesses campos, enquanto poderiam estar na escola ou brincando.

Além das experiências passadas na Síria, essas e outras situações atuais que as famílias enfrentam no dia a dia na Turquia precisam ser levadas em conta ao realizarmos um atendimento psicossocial. Um dos dois centros comunitários que oferece aconselhamento psicológico fica no distrito mais próximo da fronteira, que atualmente se encontra fechada e por onde já entraram milhares de sírios em fuga da guerra. A maioria dos cerca de 500 mil sírios que vivem na região de Sanliurfa estão na cidade ou no meio rural, e não em campos de refugiados.

São muitos os casos de pessoas que literalmente presenciaram os horrores da guerra ou foram de alguma forma forçadas a abandonar suas casas numa peregrinação de destino incerto, e agora sofrem com preconceito e barreiras culturais e linguísticas para se adaptar ao novo contexto. O objetivo dos projetos de saúde mental de MSF não é o de patologizar e medicalizar a condição do refugiado. E, sim, levar a escuta e o cuidado humanizado para os lugares onde o acesso aos serviços de saúde também foi afetado pela guerra e pela situação de refúgio, considerando o contexto e a cultura locais.

É necessário reconhecer não somente a vulnerabilidade psicológica que a guerra pode trazer às pessoas e às comunidades afetadas, mas também as possibilidades e recursos que cada ser humano possui para lidar com situações potencialmente traumáticas. É triste ver uma criança assustada com medo de dormir porque teme que a casa venha a ser bombardeada, mas aprendemos muito com a sua capacidade incrível de recuperação quando lhe é dada a simples possibilidade de brincar num ambiente seguro com outras crianças, intervenção que chamamos de psicossocial.

Aprendemos também com a potência do acolhimento e da transformação pela palavra; com a força de enfrentamento das mulheres que se empoderam ao ter de assumir novos papeis sociais devido às circunstâncias do refúgio; com os homens que sacrificam corpo e alma na busca pelo sustento de suas famílias num lugar onde eles não sabem falar a língua local; com os jovens sírios que começam a trabalhar na área humanitária e podem então ajudar outros sírios e ressignificar a própria condição; e com as alternativas encontradas pela própria comunidade para lidar com o seu sofrimento e suas questões de saúde, ainda que as condições do contexto não sejam as mais adequadas e ideais.

Como psicóloga, meu trabalho era treinar e supervisionar uma equipe de terapeutas e agentes comunitários não especialistas para realizar visitas domiciliares, acolhimento básico e os primeiros cuidados em saúde mental à população que procurava o serviço dos centros comunitários com queixas psicológicas e psicossomáticas.

Ao contrário do que muita gente pensa, como trabalhadores humanitários nós não necessariamente estamos dentro da guerra em si, não estamos lá no campo de batalha em meio a bombas e tiros – apesar de saber que muitos colegas trabalham nessas condições. Estamos ali nas bordas do conflito, muito longe dos holofotes, a uma pequena distância do olho do furacão, mas muito mais perto de poder testemunhar a vivência tão humana de alguém que sobreviveu à guerra, para nos contar não apenas de si, mas do ser humano, em seus aspectos tanto nefastos quanto sublimes.

É dessa experiência de testemunho, como eu vinha refletindo no início do relato, que nasce a responsabilidade de contar o que se viu para quem não esteve ali. De modo a trazer à tona o registro de uma tragédia humanitária – no sentido da solidariedade ao sofrimento alheio – e humana – no que diz respeito à guerra como parte de um fenômeno humano – para que possamos cuidar desses aspectos, e nos questionar de uma forma mais ampla que projeto de sociedade queremos e podemos construir.

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