Violência agrava a crise de desnutrição na República Democrática do Congo; leia os relatos de cinco famílias afetadas

O acesso a cuidados de saúde, moradia e alimentação têm sido dificultado pela violência de grupos armados e exposto as pessoas à insegurança alimentar.

Centro de alimentação terapêutica do hospital geral de referência de Masisi, onde profissionais de MSF atuam desde 2007 em apoio ao Ministério da Saúde da RDC. © Laora Vigourt/MSF

Desde o início do ano, uma média de 800 crianças que sofrem de desnutrição aguda grave foram admitidas mensalmente para tratamento nos hospitais de Mweso e Masisi, na República Democrática do Congo (RDC), quase o dobro do ano anterior. Entre janeiro e setembro de 2023, cerca de 7.500 crianças foram tratadas por profissionais de Médicos Sem Fronteiras (MSF) em apoio ao Ministério da Saúde do país.

Cenário de conflitos armados durante anos, o território de Masisi assistiu recentemente a um recomeço dos confrontos armados entre o movimento M23, as forças armadas congolesas e vários outros grupos, o que provocou a deslocamento em massa de pessoas e o agravamento de uma situação humanitária já crítica.

Masisi é conhecida por suas colinas férteis, onde a agricultura continua a ser a principal atividade econômica, e as comunidades dependem dela para se alimentar. A escalada da violência dificultou o acesso aos campos, aos mercados, às escolas, às instalações médicas e expôs as pessoas a uma insegurança alimentar permanente.

Leia os relatos de famílias impactadas por essa realidade na RDC:

A pobreza vai matar a todos.”
– Sifa, deslocada interna de Kitchanga.

Sifa com a filha Tamuriza no colo, dentro da tenda que vive no acampamento de pessoas deslocadas de Katale. © Laora Vigourt/MSF

Sifa vive há quatro meses no acampamento de pessoas deslocadas de Katale com o marido e oito filhos. A família teve de fugir em razão do aumento da violência entre grupos armados na comunidade de Kitchanga, no norte de Masisi.

“Durante os combates, a minha tia e o meu primo foram atingidos por balas perdidas e morreram. O meu marido e eu não queríamos correr riscos, sobretudo com as crianças. Por isso, fugimos”, diz Sifa.
O acampamento de pessoas deslocadas em Katale, onde se instalaram, é o local mais antigo da zona sanitária de Masisi. Criado em 2011, inclui atualmente quase 5 mil pessoas anteriormente deslocadas ou recentemente deslocadas.

“A nossa vida aqui é miserável, vivemos todos juntos numa pequena cabana construída com madeira e lonas. É difícil conseguir comida, roupa ou qualquer outro item de primeira necessidade. O meu marido e eu tentamos ganhar algum dinheiro transportando encomendas ou trabalhando nos campos. Mas não conseguimos encontrar trabalho todos os dias. Por isso, não podemos comprar nada para comer, e os nossos filhos dormem de estômago vazio”, explica Sifa.

Atualmente, três de seus filhos sofrem de desnutrição. Dois deles acabaram de ser transferidos para o hospital geral de referência de Masisi, apoiado por MSF. O terceiro, Tamuriza, de 5 anos de idade, acabou de sair do centro de saúde de Katale, onde recebeu tratamento como parte do programa nutricional para crianças que sofrem de desnutrição aguda grave sem complicações.

“Essa é a primeira vez que os meus filhos sofrem de desnutrição. Antes de fugirmos, trabalhávamos nas nossas plantações, por isso nunca ficamos um dia sem comer. Mas aqui, não tenho nada. Dou aos meus filhos os sachês de alimento terapêutico (uma pasta à base de amendoim para reabilitação nutricional), que o centro de saúde nos fornece, mas não é o suficiente porque não tenho outros alimentos para complementar”, diz ela.

Sifa está grávida de cerca de sete meses. Ela gostaria de voltar para casa com a família e retomar a sua vida anterior, longe das condições precárias e da tragédia que vivem atualmente. “Há dois meses, a minha filha Annicka morreu em razão da desnutrição no hospital. Tinha 7 anos de idade. Chegamos tarde demais… tivemos que enterrar ela no acampamento de Katale. A pobreza vai matar a todos”.

Só podíamos comer uma vez por dia e, no entanto, a Alice não tinha fome e não comia. Depois, o seu rosto, pés, pernas e mãos começaram a inchar.”
– Mandela, pai de Alice, paciente do programa de nutrição de MSF no hospital de Masisi.

Mandela e a filha Alice durante uma consulta no centro de alimentação terapêutica do hospital de referência geral de Masisi, apoiado por MSF. © Laora Vigourt/MSF

Há 14 meses, Mandela e a sua família fugiram dos confrontos no vilarejo em que viviam e se refugiaram com uma família de acolhimento, a 18 km do hospital geral de referência de Masisi. Há alguns dias, esse pai de quatro filhos caminhou durante três horas para levar a filha Alice, de 6 anos de idade, ao hospital, pois apresentava um quadro de desnutrição e um edema grave.

“Só podíamos comer uma vez por dia e, no entanto, a Alice não tinha fome e não comia. Depois, o seu rosto, pés, pernas e mãos começaram a inchar gradualmente. Levei ela ao centro de saúde de Shoa, onde lhe deram um pouco de alimento terapêutico, mas não foi o suficiente para que se recuperasse rapidamente. Por isso, na quarta visita, como o seu estado piorou, os médicos a encaminharam para o hospital de Masisi”, diz Mandela.

“Antes de fugirmos, cultivávamos amendoins e bananas em nossas plantações. Hoje, para conseguir comida, trabalho nas plantações de outras pessoas e recebo entre 2 e 10 mil francos por dia (o equivalente a R$ 3,99 a 19,89 reais). Isso não é suficiente para alimentar a minha família“.

Alice foi internada no hospital com desnutrição aguda grave, do tipo Kwashiorkor, uma síndrome frequentemente ligada a um nível muito baixo de proteínas na alimentação, caracterizada pelo aparecimento de edemas nos membros inferiores e na face. Sofria também de anorexia (perda de fome) e de uma pneumonia ligada ao enfraquecimento do seu sistema imunológico. Para que ela pudesse aceitar a alimentação, os médicos receitaram leite terapêutico em doses progressivas, até poderem administrar novamente o alimento terapêutico. Nessa altura, Alice e o pai poderão voltar para casa, enquanto ela continuará recebendo tratamento num programa de nutrição do centro de saúde.

Nem sempre posso acessar às plantações por causa dos homens armados.”
– Fahida, mãe de paciente com desnutrição atendido por MSF.

Fahida com o filho Joel nos braços, que foi internado no centro de alimentação intensiva do hospital de Masisi. © Laora Vigourt/MSF

Fahida nasceu em Masisi e vive com o marido e seus quatro filhos numa aldeia a 3 km de Masisi.

“Há quatro dias, fui ao centro de saúde de Masisi porque o Joel, o meu filho mais novo, de 1 ano de idade, tinha diarreia e vomitava muito. Ele está sempre doente. Está sempre muito cansado e só dorme. Quando eu não como o suficiente, não tenho leite suficiente para amamentar, e ele não come mais nada porque não aceita as papinhas”, diz ela.

Quando chegou ao hospital, Joel foi colocado no centro de alimentação terapêutica de internamento. A equipe médica o alimenta com uma seringa com leite nutritivo e faz testes com o alimento terapêutico. Como Joel é muito frágil, as equipes têm o cuidado de o alimentar gradualmente para garantir que Joel não rejeite.

“Joel não é o primeiro a sofrer de desnutrição na minha família. Outros filhos meus também já sofreram com isso e vejo com frequência crianças com desnutrição em outras famílias. Em nosso vilarejo, recebemos frequentemente famílias deslocadas que fogem de confrontos armados. Tentamos ajudá-las a se alimentar, mesmo que também seja difícil para nós.”

“Tudo o que produzo nos campos é utilizado para o nosso próprio consumo alimentar. Mas nem sempre consigo chegar às plantações por causa dos homens armados. Muitas vezes não vou lá fora porque é muito perigoso. Só podemos ir quando os confrontos estão mais brandos. Por isso, esperamos, por vezes, durante 15 dias. Temos medo de ir porque podemos encontrar homens armados no caminho – eles nos cobram e podem até tentar nos matar ou nos violar”.

Não é a primeira vez que um dos meus filhos sofre de desnutrição.”
– Marianna, perdeu cinco de seus filhos em razão da desnutrição.

O filho de Mariana foi internado com quadro de desnutrição aguda grave no centro de internação de alimentação terapêutica do hospital de referência de Mweso. © Laora Vigourt/MSF

Marianna vem de um vilarejo que fica a 6 horas caminhando até o hospital geral de referência de Mweso. O seu filho Irasubisa, de 1 ano de idade, foi internado na unidade de cuidados intensivos do centro de alimentação terapêutica para doentes internados devido à desnutrição aguda grave, acompanhada de pneumonia.

“Não é a primeira vez que um dos meus filhos sofre de desnutrição, por isso, quando ele começou a ter muita diarreia, vômitos e febre alta, fiquei muito preocupada. Mas foi ao ver seus olhos que percebi que era grave e corri para o centro de saúde de Birambizo”. Marianna teve 9 filhos, 5 dos quais infelizmente morreram em razão da desnutrição.

“Cultivo no campo quando tenho forças, porque com os meus filhos e as várias gestações, é difícil, sobretudo porque estou cuidando sozinha deles”.

O meu primeiro filho adoeceu, depois o segundo.”
– Feza, mãe de duas crianças com desnutrição em tratamento no hospital de Mweso.

Feza acompanhando o filho no centro de internamento de alimentação terapêutica do hospital de Mweso, apoiado por MSF. © Laora Vigourt/MSF

Feza teve que se refugiar na floresta com o marido e os dois filhos depois de fugir dos conflitos entre grupos armados perto de seu vilarejo. Os seus dois filhos, de 3 e 1 ano de idade, estão atualmente internados na unidade de cuidados intensivos do centro de alimentação terapêutica do hospital geral de referência de Mweso, devido à desnutrição aguda grave com complicações.

“O meu primeiro filho adoeceu, depois o segundo. Então, saí da floresta e vim a pé até o hospital”, diz ela. As duas crianças foram internadas com urgência na unidade de cuidados intensivos, porque a sua desnutrição era acompanhada de uma sépsis grave. O mais novo, Mosee, foi diagnosticado com sépsis digestiva, que pode ser tratada com medicamentos. Mas Fourraz, o mais velho, foi internado com uma sépsis grave da face, conhecida como Noma, que requer cirurgia. Os dois principais fatores que causam essa infecção estão sobretudo ligados às condições de vida e a uma saúde debilitada – no caso de Fourraz, a desnutrição enfraqueceu o seu sistema imunológico, tornando-o mais vulnerável a doenças e infecções.

“É a primeira vez que os meus filhos estão sofrendo de desnutrição. No meu vilarejo, costumava ver crianças com desnutrição, mas eu e o meu marido conseguimos arranjar trabalho nas plantações dos vizinhos. Eu cultivava principalmente batata-doce. Mas, desde que fugimos, não temos nada, nem roupa, nem comida. Não há nada na floresta, por isso tentamos voltar ao vilarejo durante o dia, quando podemos, para comer qualquer coisa, mas quando tem homens armados no caminho, não conseguimos lá chegar. Na melhor das hipóteses, conseguimos chegar lá duas vezes por semana”, explica Feza.

“Desde que estamos no hospital, a saúde das crianças melhorou. Mas quando sairmos daqui, o que é que eu vou fazer? Vamos voltar para a floresta e não haverá comida, por isso, podemos acabar retornando aqui por causa da desnutrição.”

 

Desde 2007, Médicos Sem Fronteiras (MSF) oferece cuidados médicos gratuitos no território de Masisi, apoiando dois hospitais gerais e 12 centros de saúde em apoio ao Ministério da Saúde da RDC. Nossas equipes também fornecem tratamento para crianças com desnutrição em três centros de alimentação terapêutica para pacientes internados, incluindo um no centro de saúde de Nyabiondo na zona de saúde de Masisi, bem como nove centros ambulatoriais nas zonas de saúde de Masisi e Mweso. MSF também distribui alimentos terapêuticos e medicamentos essenciais para tratar a desnutrição, enquanto nossas equipes de promoção de saúde trabalham em campanhas de conscientização nas comunidades locais para os sinais de desnutrição e para a importância de obter tratamento no tempo adequado.

 

 

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