Sudão do Sul: esperança e cuidados médicos e humanitários em Old Fangak

Confira o relato de Ebenezer Ngwakwe, médico de MSF na região

Sudão do Sul: esperança e cuidados médicos e humanitários em Old Fangak

O médico Ebenezer Ngwakwe atuou por 11 meses no projeto de MSF em Old Fangak, no estado de Jonglei, no Sudão do Sul. O local sofre com conflitos armados, inundações e precárias condições de infraestrutura, mas possui uma população que nunca perde a esperança. Confira o seu depoimento:

“Ela entrou em nossa clínica silenciosamente, com seu bebê de 5 meses nos braços. Eu podia ver facilmente as emoções avassaladoras que ela tanto tentava esconder, enquanto as lágrimas começaram a escorrer por seu rosto. Este foi um dos inúmeros encontros semelhantes que caracterizariam minha estadia de 11 meses com MSF em Old Fangak, no Sudão do Sul.

Linda Old Fangak

Como o inglês é minha língua de origem, foi apenas uma questão de tempo até que me oferecessem uma designação no Sudão do Sul, onde o inglês é o idioma oficial. Old Fangak é uma região no norte do país, cortada pelo rio Phow. Não há redes de telecomunicações, nem estradas asfaltadas, nem carros, apenas barcos.

Todas as noites, ao voltarmos de barco para o nosso complexo, o pôr do sol era de tirar o fôlego, o canto dos pássaros, os arbustos verdes exuberantes à beira do rio, o som da água espirrando no barco e as crianças nadando na margem do rio, temporariamente nos aliviava de todas as memórias dos doentes que sofrem no hospital.

Esta comunidade pantanosa consiste em cerca de 30 mil pessoas. Todos que conheci foram muito amigáveis, fortes e resilientes. Apesar de todos os confrontos intermitentes entre clãs, mortes por vingança, fome, inundações e zero infraestrutura moderna, continuam encontrando maneiras de seguir em frente com alegria, quase nunca perdendo a esperança. Por isso, prometi, com a mão direita no peito, que a minha estadia aqui apenas traria mais esperança a essas pessoas.

Mão de esperança

Então, aqui estava eu, trabalhando em nossa clínica quando aquela senhora entrou. Nya-Cece (nome fictício) tem 20 e poucos anos, teve seu primeiro filho aos 14, dois casamentos fracassados e agora tem um novo bebê com um soldado que mora longe, em outra comunidade e quase nunca a visita.

As lágrimas rolaram por seu rosto enquanto ela falava. “Eu me sinto sozinha, não tenho ninguém. Meu pai não se importa comigo porque tive meu primeiro filho fora do casamento. Ele diz que eu trouxe vergonha para nossa família. Minha mãe se casou novamente e foi embora com seu novo marido. Agora estou aqui, com HIV, sem dinheiro, sem trabalho e quase sem comida para meus filhos”.

Ao ouvi-la, eu sabia que esse era o motivo exato pelo qual entrei para MSF: ajudar pessoas como ela. De acordo com os últimos relatórios do programa das Nações Unidos para a Aids (UNAIDS), cerca de 190 mil pessoas vivem com o vírus HIV no Sudão do Sul. Sendo a principal organização de saúde em Old Fangak, MSF oferece um pacote abrangente de cuidados para tratar o HIV por meio de uma clínica com serviços de aconselhamento, consultas, tratamento de infecções oportunistas em pacientes internados, testes de carga viral, prevenção da transmissão de mãe para filho e campanhas comunitárias de conscientização.

Com a ajuda do psicólogo de MSF com quem eu estava trabalhando, oferecemos a Nya-Cece atendimento médico, apoio psicossocial e a vinculamos a outra organização que fornece alimentos. Por meio desse tipo de trabalho, agora temos 120 pacientes inscritos no tratamento de HIV em Old Fangak, contra zero há três anos.

Ainda assim, a situação do HIV em Old Fangak é muito desafiadora. As pessoas têm pouco acesso aos cuidados de saúde (às vezes, os pacientes caminham 72 horas de seu vilarejo para chegar ao nosso centro) e quem tem o vírus é altamente estigmatizado na comunidade.

Gerenciar a situação é mais desafiador por vários motivos. A estação do “intervalo da fome”, quando o alimento de uma colheita termina e o alimento da próxima ainda não está pronto, atinge duramente as pessoas, tornando mais difícil obter o suficiente para comer – vital para manter um sistema imunológico forte e administrar o HIV. Além disso, as pessoas são forçadas com frequência a se mudar para escapar de conflitos e das inundações, o que torna difícil o acesso a cuidados de saúde e também que as pessoas ganhem dinheiro ou cultivem alimentos suficientes.

Mulheres em Old Fangak

Talvez a coisa mais dolorosa que percebi durante meu tempo em Old Fangak seja a gritante desigualdade de gênero em uma cultura tradicional. Como Nya-Cece, a maioria das jovens já é casada e tem pelo menos um filho quando completam 18 anos. A maioria não tem educação formal, portanto, não tem empregos e é difícil para elas ganharem dinheiro.

Por exemplo, eu poderia contar apenas cinco mulheres da equipe médica, em comparação com 45 homens do nosso hospital. Muitas mulheres têm de pedir o consentimento do homem (geralmente do marido ou pai) para ter acesso a cuidados básicos como serviços de planejamento familiar ou encaminhamento para um centro de saúde secundário. Se ele recusar, ela terá o cuidado negado. É impressionante que, em 2020, essa seja a realidade das mulheres em Old Fangak. Certamente, muito precisa ser feito para lidar com essa desigualdade de gênero.

Apesar da natureza amigável das pessoas em Old Fangak, os incessantes confrontos armados entre os clãs tornaram a situação de segurança muito precária e afetou negativamente o acesso aos serviços médicos.

Em maio, nossa equipe foi evacuada para New Fangak. Os eventos que levaram a esta evacuação começaram dois dias antes, quando o governo tentou sem sucesso desarmar um grupo local. Naquela manhã, houve troca de tiros entre as duas partes interrompendo as atividades do hospital enquanto éramos rapidamente levados ao complexo da equipe internacional.

No dia seguinte, pudemos ver mulheres e crianças fugindo de Old Fangak em massa, em antecipação à guerra. Naquela manhã de evacuação, demos alta aos pacientes estáveis e suspendemos todas as atividades. Os pacientes instáveis precisavam de cuidados continuados, então vieram conosco para New Fangak. Alguns profissionais vieram conosco para ajudar a cuidar deles, enquanto outros fugiram de Old Fangak para buscar segurança em outro lugar.

Em New Fangak, a notícia de nossa chegada se espalhou tão rápido que as pessoas começaram a vir buscar atendimento médico. Chegamos a salvar alguns feridos de guerra quase mortos e encaminhá-los a outras instalações médicas para tratamento cirúrgico.

Mas eu não conseguia parar de pensar em todos os pacientes em Old Fangak que agora não teriam acesso a cuidados de saúde por uma semana. E os pacientes com diabetes tipo 1 que dependem de nós para sua insulina diária? E as pessoas que vivem com HIV e que precisam de seus medicamentos? E as mulheres em trabalho de parto que precisariam de cuidados obstétricos? A lista continuava e continuava.

A vida em New Fangak era muito desafiadora. O tempo quente hostil, a falta de água potável, a falta de Wi-Fi para me comunicar com minha família e amigos, as picadas de mosquitos e cobras, tudo isso fez de New Fangak uma experiência muito desafiadora para mim. Por fim, ao final de sete dias, nossa equipe, que agora se tornara um grupo de sete irmãos, voltou com gratidão para Old Fangak para retomar as atividades do hospital.
Quando reabrimos pela primeira vez, estava muito ocupado e a equipe teve que trabalhar muito para atender todos os pacientes. No programa de HIV, tivemos que implementar prescrições de medicamentos de vários meses para garantir que os pacientes tivessem suprimentos extras de seus medicamentos em caso de emergências futuras.

Olhando para trás

Estou perto do fim desta tarefa com um profundo apreço pela relevância de MSF em Old Fangak. Nya-Cece é apenas um exemplo. Eu a vi novamente há uma semana e ela estava muito melhor, tomando seus medicamentos regularmente e cuidando de seus filhos.
Olhando para trás, foram 11 meses impactantes ao oferecer cuidados e esperança incessantemente.”

 

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