“Nós temos sempre muito a aprender com as equipes contratadas localmente”

Guilherme Valente narra os desafios e percepções durante seu trabalho como administrador na Tunísia para apoiar nossas atividades na Líbia.

 

O meu nome é Guilherme D’Avila H. Valente, e recentemente* retornei da minha terceira experiência com Médicos Sem Fronteiras (MSF), na posição de administrador. Foram cinco meses de intenso trabalho para um projeto implementado nas cidades de Misrata e de Bani Walid, na Líbia.

Além das diversas complexidades relacionadas às disputas internas e desdobramentos desde a queda de Muammar Gaddafi, em 2011, a Líbia tem sido a rota de fluxos migratórios no norte da África, principalmente pela sua posição geográfica que permite acesso ao Mar Mediterrâneo (e à Europa). Um grande número de migrantes vindos de países vizinhos, principalmente ao sul, busca entrar no país ou mesmo a travessia rumo à Europa em busca de refúgio, proteção e melhores condições de vida. Essa realidade torna o contexto bastante complexo e faz do país um forte alvo do tráfico humano e de condições de violência.

Paralelamente a isso, muitos migrantes são arbitrariamente aprisionados em condições de extrema vulnerabilidade e levados para prisões e centros de detenção, onde ficam sujeitos a violações de direitos humanos. Entre aqueles que buscam a travessia do Mediterrâneo, há muitos casos de desembarque forçado pela própria Guarda Costeira da Líbia.

 

 

Diante de todo esse cenário, o projeto de MSF se propunha a fornecer ajuda médico-humanitária a migrantes em condições de extrema vulnerabilidade, além da atuação de equipes médicas em Misrata.

Desde o primeiro contato que tive com esse trabalho, e antes mesmo de decidir aceitar o desafio, eu soube que esse seria um projeto muito diferente dos demais dos quais fiz parte. Diferentemente de nossos colegas nacionais da Líbia, toda a equipe de profissionais internacionais móveis não teria acesso ao projeto no país, mas atuaríamos remotamente a partir de Tunes, capital da Tunísia (país vizinho à Líbia e também de maioria muçulmana, algo que seria novo para mim).

Já na chegada (em alguns casos até mesmo antes de partir) recebemos diversos tipos de informações e orientações que podem contribuir para o nosso trabalho: desde aquelas relacionados à saúde (mental e física) e segurança, até os mais específicos, voltados à compreensão geral do trabalho e do projeto, e também para as nossas atividades e responsabilidades específicas.

O nosso cotidiano na Tunísia incluía ainda uma diferença de fuso horário (1 hora) para a Líbia. Devido ao contexto remoto, a visibilidade de muito daquilo que acontecia no projeto (na Líbia) naturalmente não era das melhores, e isso implicava na necessidade de uma comunicação bem articulada e frequente, sempre buscando o máximo de clareza e objetividade no diálogo entre todos os envolvidos nas atividades e operações.

A rotina de trabalho no projeto, tanto na Líbia quanto na Tunísia, era bastante agitada. Fazíamos reuniões constantes (online), além de ligar frequentemente para as equipes contratadas localmente que atuavam dentro da Líbia.

Nós, profissionais internacionais móveis, temos sempre muito a aprender com as equipes contratadas localmente. As trocas (cotidianas, informais ou por reuniões) geralmente nos permitem compreender muito sobre o local em que atuamos e as diferenças culturais existentes. É nesse âmbito que a gestão de pessoas demanda cautela, visto que alguns comportamentos locais podem ser bastante diferentes daquilo que estamos habituados em nossa rotina em nosso país de origem.

Na posição de administrador, realizei também muitos processos de recrutamento e, pela primeira vez, tive a experiência de ter o apoio de uma intérprete (árabe para inglês e inglês para árabe) para algumas das entrevistas. As atividades financeiras envolviam muito mais o processo de análise e revisão de documentos e lançamentos, além da validação e aprovação pelo meio digital.

Porém, um dos grandes desafios durante esses cinco meses foi a reestruturação de um controle de pagamentos para que pudéssemos nos comprometer a pagar os prestadores de serviço com a devida pontualidade, algo que parece simples, mas que tinha, entre outros fatores complicadores, a delicada situação bancária da Líbia. Além desse, na reta final eu tive um outro grande desafio, que foi a elaboração da proposta de orçamento para o ano de 2024, que envolve diversas etapas, desde a discussão e alinhamento entre os diferentes departamentos até a apresentação detalhada do orçamento estruturado à coordenação do projeto.

Ao fim dos cinco meses e diante da conclusão de todas as atividades com o devido êxito, a sensação que fica ao partir é de que toda a exaustão e esgotamento valeram a pena e, para além de muitas lições, ficam também algumas boas amizades.

 

*Diário escrito em março de 2024.

 

 

 

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