Ganhando confiança

Depois de dois meses no Sudão do Sul, Raphael Cruz está mais adaptando ao contexto e as pessoas a ele: “Minha equipe agora confia em mim, me pergunta coisas”

Data: 24/03/2016

Mais 20 dias se passaram. Minha inspiração para escrever é a saudade. Sempre sinto saudades, mas às vezes bate uma saudade mais forte. Bastante coisa mudou nessas três semanas. Duas obstetrizes foram embora (a Trine e a Susan) e vieram dois novos (Nathalie – belga, conheci durante o “curso” que fiz lá – e Yibo, mora perto da clínica, é recém-formado e estudou na capital). Com a ida da Trine, eu fiquei responsável pelos pedidos da maternidade e consultórios, que envolvem as medicações, os materiais, etc., e a coleta de dados referentes a pré-natal, puerpério, planejamento familiar, maternidade, entre outros. Só ficou a Agnes, que é a mais antiga, e está aqui há oito meses.

Ah, um monte de gente indo embora, um monte de gente nova… Nesse rolo eu acabei ficando responsável também pelo pedido de comida. É, se o povo passar fome, a culpa é minha.

O que tem para fazer aqui? Bom, aqui é um acampamento de refugiados. Lugares para a gente ir tem a airstrip, que o pessoal usa para correr quando as questões de segurança nos permitem – quase sempre pode – e o mercado, que é daqueles mercados à moda antiga, tipo feira.

Para beber, a coordenadora do projeto faz pedido de cerveja para capital, e quem quiser, pega (e paga) com ela. Eu não sou fã de cerveja e economizo.

As vezes tem vodka ou gim. Fiz caipiroska para o povo e eles adoraram! Apelidaram de “happiness” (felicidade, em inglês). Quando a vodka acabou, fiz com gim, e eles apelidaram o drink de “joy” (alegria, em inglês), porque não é tão bom quanto a happiness, mas dá para enjoy (aproveitar, em inglês)!

De vez em quando, também faço chá gelado. Todo mundo adorou, disseram que é melhor que o comprado. Também tenho feito suco de manga para todo mundo. É incrível como o povo não tem o costume de fazer suco.

Finalmente, me sinto parte do grupo, consigo brincar com o pessoal e tudo mais… E, enfim, achei algo para me exercitar. Badminton. Não é “UAU”, mas é melhor que ficar parado. Jogo dia sim, dia não com a coordenadora de projeto, a Lou, e sempre tem alguém que resolve jogar com a gente.

Meu lazer? À noite, a gente costuma sentar e bater papo. O pessoal costuma fumar e de vez em quando beber, coisas alcoólicas ou não. Meus horários são diferentes por causa dos plantões, então hoje, quinta-feira, estou de folga e todos estão trabalhando. Fiquei enfurnado em minha cama, para ninguém ficar invejando meu tempo livre… Às vezes, eu estudo um pouco de obstetrícia, às vezes tento escrever minhas coisas do mestrado, às vezes jogo age of mythology e counter strike no meu notebook.

No meu trabalho, nada de muito diferente. Tenho que ir sempre à clínica para resolver algo de estoque ou para alguma reunião ou treinamento, mesmo na minha folga. Estou mais confiante e agora consigo discutir casos com a minha supervisora. Às vezes, é complicado, porque os procedimentos que constam do protocolo de MSF podem ser diferentes daquilo que a gente aprende, mas vamos nos adaptando.

Minha equipe agora confia em mim, me pergunta coisas, prepara chá para mim, me ensina árabe, damos risadas. Eles estão se acostumando com o meu modus operandi, então muitas vezes nem preciso pedir as coisas rotineiras.

As duas últimas semanas foram tranquilas, poucos pacientes. Às vezes, as pacientes combinam de ir todas juntas e temos noites bem agitadas. Entre sete e nove partos no plantão noturno. Mas, no geral, tem sido bem calmo, coisa der cinco partos.

Até agora a situação aqui no campo de refugiados de Doro, na província de Maban, está bem tranquila. Mas como sempre dizem para a gente, a situação pode mudar em questão de segundos. Isso é MSF. Sempre carrego na minha mochila umas coisas básicas: pringles, cookies, água, canivete, celular, carregador portátil, ventilador usb – que dá para ligar no carregador portátil –, lanterna (com uma bússola), isqueiro, sonar, luva, estetoscópio, carteira com 200 do dinheiro local e identificação de MSF. É, eu sou doido, fazer o quê?

Ah! Meu vocabulário em árabe está aumentando aos poucos! Mas descobri que tem milhões de variações. É pior que as variações que tem no espanhol da Espanha e o espanhol sul-americano e centro-americano. Estou tentando aprender o árabe clássico com um amigo do Egito.

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