“Presenciar uma recuperação assim é algo que transforma tudo e todos”

Foto: Tadeu Andre/MSF

Estive no projeto de Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Boma, no Sudão do Sul, por seis meses. Eu era responsável pela única unidade de internação pediátrica do local, e atendíamos crianças recém-nascidas até os 5 anos de idade. Não consigo me lembrar de muita coisa de quando cheguei lá, no dia 22 de novembro de 2022, mas eu lembro bem de Titochi e de Sarafina, sua mãe.

Durante meu primeiro turno, em uma enfermaria com 10 leitos e com outras 12 crianças internadas na tenda de apoio, um bebê no leito um chamou minha atenção em especial. Titochi era um recém-nascido de 12 dias que estava internado havia 48 horas e tinha o corpo contraturado. Sarafina, sua mãe, era uma das quatro esposas de um criador de gado, e a família dela morava em um acampamento.

No Sudão do Sul, há criadores de gado nômades que migram de acordo com a natureza para procurar o melhor lugar para as vacas. Titochi nasceu de parto domiciliar, em casa – uma tenda de plástico e sapê compartilhada com a mãe e os quatro irmãos. Dias após o nascimento, Sarafina notou que havia algo estranho. Diferentemente de seus outros filhos, o umbigo de Titochi não cicatrizava. O bebê tinha uma ferida na cabeça e a cada dia chorava mais e mamava menos.

Sarafina pensou que o filho estava com cólica, porque Titochi também começou a apresentar uns espasmos. Ela tentou cuidar de Titochi em casa, já que havia mais quatro filhos precisando dos seus cuidados. Além disso, o único serviço de atendimento médico ficava a dois dias de distância e seria difícil andar por tanto tempo, ainda se recuperando do parto. Com pouco mais de uma semana de vida, Titochi parou de mamar de vez e ficou com o corpo rígido. Sarafina se levantou, deixou os outros filhos no acampamento, tomou Titochi nos braços e caminhou até o nosso centro de internação pediátrica.

Quando encontrei Titochi, foi como se tudo desaparecesse para mim. Ele estava com desidratação e desnutrição graves, chorando muito e apresentando espasmos quase ininterruptos. Titochi foi o primeiro e único caso de tétano neonatal que eu vi e cuidei ao longo da minha carreira. Antes dele, só tinha estudado tétano em livros. Eu sabia que luz e barulho eram gatilhos, e que havia muita dor envolvida. Imagina todos os seus músculos totalmente contraídos ao mesmo tempo?!

Tiramos o bebê da enfermaria e o colocamos em uma ala menor, mais silenciosa, sem nenhum paciente. Apagamos a luz e iniciamos um protocolo de analgesia para acalmar a dor. Chequei no guia de referência de pediatria de MSF as doses exatas de cada medicamento, a terapia nutricional e o manejo da desidratação para este caso. Fizemos o curativo do umbigo, mas não era só isso.

Quando retirei o curativo da cabeça de Titochi, percebi que a lesão não era um ferimento comum, mas uma condição gravíssima: uma fascite necrotizante.

Reformulamos o tratamento. Nutrição, hidratação, cuidados com os dois curativos, analgesia e amplo espectro de antibióticos. No primeiro curativo, eu suava de tal forma que minhas roupas ficaram completamente encharcadas. Precisei tirar os óculos porque não havia jeito de enxergar, de tão embaçados que estavam. Um enfermeiro me ajudava.

Como não tínhamos centro cirúrgico, precisamos fazer o desbridamento* da lesão no leito onde estava o bebê. Sarafina permanecia compreensiva, calma e segura. Não tínhamos muitos recursos, mas muita experiencia e comprometimento da equipe toda. E muita coragem e certeza de que aquela era a coisa certa a fazer. Preparamos um espaço para que ele estivesse o mais estéril possível, e aquele foi o primeiro dos 28 curativos que fizemos em Titochi. Ele ficou com a gente por 30 dias.

Titochi suportou bravamente todos os curativos. Só chorava quando eu tocava na ferida e, no final, quase sempre nos olhava nos olhos profundamente. Aos poucos, bem lentamente, a ferida foi se curando. No final de cada curativo, cobríamos a cabecinha com gaze estéril e confeccionávamos uma touquinha de atadura.
O tétano foi tratado. O coto umbilical cicatrizou. A fascite foi regredindo. Titochi voltou a mamar e ganhou peso. Depois de 30 dias de internação, chegou a hora da alta. O acampamento onde vivia a família ia mudar de lugar, e Sarafina precisava ir. Titochi podia receber alta, mas ainda não estava completamente curado. Havia feridas a cicatrizar completamente, peso a ganhar.

Ensinamos Sarafina a trocar o curativo, demos a ela o material para os curativos e combinamos que ela voltaria para acompanhamento. Confiamos uma na outra. Como Titochi havia ficado um mês sem quase nenhum estímulo devido à gravidade da doença, também ensinei à Sarafina alguns exercícios de estimulação para fazer com ele. Dei alta.

Antes de ir, ela me contou que todos lhe disseram que seu filho nunca se recuperaria, mas que ela não ia pensar nisso porque chegou ali com ele “morto” e saiu com ele vivo. E que ia fazer tudo que a orientássemos a fazer. Depois de muitas recomendações, Titochi foi embora com a vigésima oitava touquinha de gaze.
Nos seis meses que fiquei em Boma, Sarafina veio me visitar pelo menos uma vez por mês. Todas as vezes, o bebê vestia a touquinha. Às vezes, o acampamento da família estava a mais de um dia de distância, mas Sarafina caminhava com Titochi amarrado no peito, carregando um galão com pelo menos cinco litros de leite de suas vacas, que ela fazia questão de nos dar de presente.

Sarafina me mostrava como o filho estava crescendo bem, ganhando peso, “bochechas e vida”. Na última visita, Titochi já estava quase sentando. Seu exame neurológico não mostrou qualquer alteração. Sarafina mostrava o bebê fazendo os exercícios e me pedia orientações para novos estímulos. Nós sempre nos falávamos mutuamente: “Muito obrigada”.

Assistir o improvável acontecer diante dos nossos olhos faz todo mundo ser melhor, na minha opinião. Sarafina e Titochi nos ensinaram muito. Presenciar uma recuperação assim é algo que transforma tudo e todos. Todos nós nos transformamos.

A touquinha de gaze virou a touquinha do Titochi. Depois dele, todos os recém-nascidos ou crianças que precisavam de um curativo no couro cabeludo passaram a receber uma “touquinha de Titochi” para aquecer ou proteger. E toda vez que vestíamos algum bebê com ela, vestíamos também a nós mesmo de força e esperança por termos vivido uma história tão especial.

*Técnica para limpar os ferimentos.

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