O filho único

Isabel (primeira à esquerda) e Moi (segundo à esquerda) acompanhados de outros colegas de MSF no Sudão do Sul. © Arquivo pessoal.

A pediatra Isabel Aroeira compartilha experiência marcante no Sudão do Sul – seu primeiro projeto com MSF.

Stella me olhou com olhos assustados quando entregou em meus braços o seu único filho. Há cinco meses*, eu havia chegado em Kajo Keji, cidade do Sudão do Sul, a bordo de um pequeno avião que aterrissou em uma pista de terra. Nesse lugar distante e ao mesmo tempo mágico, no coração da África, encontrei um povo que, mesmo após enfrentar os horrores da guerra, mantinha o sorriso e a alegria de
viver. À sombra das mangueiras, a comunidade Kuku me acolheu de braços abertos, e cada celebração era motivo para dança.

Kajo Keji era um centro importante no Sudão do Sul, o país mais novo do mundo. Em 2017, milhares de pessoas na cidade foram forçadas a se deslocar para acampamentos de refugiados em Uganda, fugindo dos conflitos. O hospital e as escolas foram abandonados, e o local se tornou uma cidade-fantasma.

Em 2022, com a situação de segurança mais estável e atendendo a uma demanda da comunidade, Médicos Sem Fronteiras (MSF) decidiu reabrir o hospital, permitindo o acesso da população a serviços de saúde gratuitos e ajudando a criar condições para que as pessoas retornassem às suas casas.

Em fevereiro de 2023, dez dias antes da minha chegada, o hospital foi inaugurado. Enquanto a equipe de engenharia reformava os prédios abandonados, MSF montou tendas onde funcionariam pronto-socorro, maternidade, enfermaria
clínica e cirúrgica, CTI neonatal e centro cirúrgico.

Em meu primeiro projeto com MSF, meu papel era cuidar dos pacientes pediátricos e dar suporte ao início das atividades no CTI neonatal e na enfermaria pediátrica. No entanto, minha maior contribuição seria capacitar a equipe de profissionais do Sudão do Sul no cuidado com os pacientes, especialmente com os recém-nascidos prematuros. Em minha colaboração com médicos, enfermeiros e clínicos do Sudão do Sul, Moi se destacou pela dedicação e pelo entusiasmo em absorver o que eu tinha para compartilhar. Treinei-o para liderar o CTI neonatal após o fim da minha participação no projeto.

O bebê de Stella foi o primeiro recém-nascido de 30 semanas (sete meses e meio de gestação) que recebemos no CTI. Ele pesava apenas 1,5kg e era seu único filho. Antes dele, Stella tivera outros cinco bebês, que faleceram logo após o parto devido à prematuridade. Fragilizada e sem apoio da família e da comunidade, ela já parecia estar sem esperanças.

Em uma longa trajetória sob nossos cuidados médicos, o bebê de Stella recebeu antibióticos, fototerapia (banho de luz), soro por meio venoso e leite materno por sonda. Na segunda semana de vida, a suspeita de uma grave infecção intestinal
quase me fez perder as esperanças também. Recomeçamos os antibióticos e suspendemos a alimentação, de modo que o soro por meio venoso era essencial para que ele pudesse sobreviver. E quando ninguém mais conseguia introduzir o cateter na veia do bebê, Moi era o único capaz de salvar o dia. Após alguns dias, o pequeno melhorou e pudemos recomeçar o leite materno.

Na terceira semana de tratamento, meu trabalho de seis meses no Sudão do Sul chegou ao fim e precisei me despedir de Stella e de seu bebê. Ela me deu a honra de escolher o nome de seu filho, e não tive dúvidas: Samuel** (o nome de Moi em inglês).

Após minha volta para o Brasil, toda semana Moi me ligava para me contar sobre os pacientes. E hoje, um mês após meu retorno e após quase dois meses de internação, recebi a notícia de que o bebê de Stella está pesando 2kg,
mamando só no peito e receberá alta!

Ainda há muito o que fazer, mas hoje o mundo está melhor porque Samuel vive!

*Diário de bordo escrito em outubro de 2023.

** Em Kajo Keji, os bebês recebem dois nomes ao nascer: um em kuku, idioma local, e outro em inglês, idioma oficial do Sudão do Sul.

 

 

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