Ucrânia: psicólogos ajudam vítimas da guerra a encontrar maneiras de conviver com o trauma

MSF oferece cuidados de saúde mental em Vinnytsia para pessoas que tiveram que fugir da guerra na Ucrânia.

Lidia Bazualyeva, de 74 anos de idade, foi deslocada de sua casa em Kherson e recebeu apoio de saúde mental de MSF. © Fanny Hostettler/MSF

“Moro em Mariupol desde criança”, diz Alina Rosheva. “Tínhamos uma casa linda e eu tinha um grupo de amigos. Aguardava o futuro com confiança. Mas tudo isso chegou ao fim em fevereiro de 2022. Todos os nossos parentes vieram se juntar a nós em nosso porão. Éramos 13, jovens e velhos, tentando sobreviver como podíamos. As explosões foram tão intensas que as portas do porão foram destruídas. A decisão de partir era óbvia. Se tivéssemos ficado, não estaríamos vivos.”

Após 20 dias abrigada no porão, Alina, de 20 anos de idade, empreendeu uma longa e perigosa jornada com seus parentes, passando por uma dúzia de postos de controle controlados pelo exército russo, antes de cruzar a linha de frente para chegar ao território controlado pelo exército ucraniano. Seguindo para oeste, através de Zaporizhzhia, ela finalmente chegou à cidade de Vinnytsia, que se tornou seu lar temporário.

Assim como Alina, mais de 4,6 milhões de ucranianos estão atualmente deslocados dentro do país, sendo que 160 mil deles estão em Vinnytsia. A partir de abril de 2022, as clínicas móveis de Médicos Sem Fronteiras (MSF) prestaram primeiros socorros médicos e psicológicos em abrigos dentro e ao redor da cidade onde as pessoas deslocadas estavam hospedadas. Para aumentar a conscientização sobre o apoio psicológico oferecido, os promotores de saúde de MSF realizam sessões em grupo para adultos e crianças.

Ficamos felizes em ver que, com o passar do tempo e das sessões, as crianças começaram a brincar juntas.”

Mariana Rachok, promotora de saúde de MSF

O apoio psicológico fez uma grande diferença na vida de muitas pessoas, especialmente nas crianças. “Quando começamos, as pessoas nos disseram que seus filhos simplesmente ficavam sentados, sem se comunicar com ninguém”, disse Mariana Rachok, promotora de saúde de MSF. “Ficamos felizes em ver que, com o passar do tempo e das sessões, as crianças começaram a brincar juntas”.

Atividades de saúde mental em Vinnytsia para pessoas com transtorno de estresse pós-traumático © Fanny Hostetter/MSF

Cuidados mentais para traumas relacionados à guerra

As equipes de MSF em Vinnytsia logo perceberam que havia necessidade de prestar atendimento para cuidados de saúde mental especializados para pessoas que viviam com transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) provocado pela guerra. Em setembro de 2023, MSF abriu um centro de trauma em Vinnytsia para pessoas com TEPT relacionado ao conflito.

“A maioria dos pacientes são pessoas deslocadas que presenciaram e sobreviveram a eventos terríveis”, diz Lilia Savchenko, médica de MSF. “Eles apresentam desesperança, pesadelos, flashbacks recorrentes, ansiedade e distanciamento de outras pessoas. Todas essas são reações normais a eventos anormais. Mas se estas condições persistirem por mais de três a seis meses, então é uma indicação de que a pessoa sofre de TEPT. A partir daí, é provável que piore a cada dia [se não obtiver apoio].”

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Os psicólogos de MSF atendem atualmente cerca de 30 pacientes em consultas semanais. Os pacientes passam por uma avaliação inicial, por meio de uma consulta com um médico e um dos psicólogos, que fazem o diagnóstico com base em exames e observação clínica, e traçam um programa de tratamento.

“O programa de tratamento depende do estado mental em que a pessoa chega até nós, mas envolve uma média de 10 a 15 consultas”, diz a médica Savchenko. Nas consultas, os psicólogos de MSF utilizam práticas baseadas em evidências divididas em três fases: estabilização, processamento de traumas e reintegração à vida social. Todas as fases são adaptadas às necessidades dos pacientes.

Estigma em torno da saúde mental

Um sintoma comum do transtorno de estresse pós-traumático é a resistência em procurar ajuda. Isto é muitas vezes agravado pelo estigma que existe em torno dos cuidados de saúde mental. “Há uma falta de compreensão de como a psicoterapia funciona, e isso pode desencorajar as pessoas a procurar ajuda”, diz Andrii Panasiuk, psicólogo e supervisor de saúde mental de MSF.

Para aumentar a conscientização sobre o TEPT e informar as pessoas sobre seus sintomas, as equipes de MSF realizam sessões com médicos de família e associações de veteranos. Eles também promovem sessões de psicoeducação sobre os sinais de TEPT durante oficinas criativas de atividades artísticas com organizações locais para pessoas deslocadas, como I’Mariupol ou o centro de Kherson.

Durante estas atividades, os promotores de saúde conversam com cada participante individualmente, para poder construir uma relação de confiança, identificar pessoas que poderiam se beneficiar de apoio psicológico e capacitá-las para procurar cuidados.

Quando me comunico e compartilho informações, aos poucos começo a viver.”

Lidia Bazualyeva, paciente de MSF para tratamento de TEPT

“Costumo traçar paralelos entre lesões físicas e mentais”, diz Mariana Rachok. “Se você não desinfeta ou trata uma ferida, mas simplesmente a cobre e tenta ignorá-la, a ferida só piora. Não está em poder do psicólogo trazer de volta sua casa ou seu ente querido, mas está em seu poder ajudá-lo a encontrar maneiras de conviver com o trauma, aprender a compreender suas emoções, a lidar com elas e a encontrar maneiras de se ajudar.”

Momento de descontração durante atividade de saúde mental com pessoas deslocadas pela guerra em Vinnytsia. ©Florence Dozol/MSF

Recomeçando a viver

Lidia Bazualyeva, de 74 anos de idade, foi deslocada de sua casa em Kherson e recebeu apoio de saúde mental de MSF para tratamento de TEPT. “Todas essas atividades criativas me ajudaram psicologicamente, assim como a consulta com a psicóloga. Lentamente saí desse estado pós-traumático muito difícil. Agora esta é a minha única família, e nunca perdi um evento mediado pelos promotores de saúde”, diz ela com um sorriso. “Quando me comunico e compartilho informações, aos poucos começo a viver.”

Alina Rosheva concluiu recentemente o programa de apoio psicológico de MSF. “Fui a muitas sessões de terapia”, diz ela. “Foi difícil. A recuperação não acontece da noite para o dia – é um processo longo e complicado. Mas três meses depois de iniciar o tratamento, parei de ter ataques de pânico, eles desapareceram. Finalmente aprendi a controlá-los e a lidar com eles.”

Hoje, Alina é responsável pela organização de atividades culturais da organização I’Mariupol. Ela construiu um novo grupo de amigos em Vinnytsia e está novamente encarando o futuro com confiança.

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MSF na Ucrânia

MSF atuou pela primeira vez na Ucrânia em 1999, oferecendo tratamento para HIV/AIDS, tuberculose e hepatite C. Entre 2014 e 2019, as equipes de MSF trabalharam nas regiões afetadas pelo conflito de Luhansk e Donetsk, administrando clínicas móveis, prestando apoio de pares aos profissionais de saúde locais e os treinando para fornecer cuidados de saúde mental. Nos dois anos desde a escalada dramática da guerra na Ucrânia, MSF expandiu suas atividades para incluir organização de evacuações e encaminhamentos de pacientes; prestação de cuidados de saúde médica e mental por meio de clínicas móveis; prestação de cuidados cirúrgicos, de emergência e intensivos; sessões de fisioterapia; e fornecimento de tratamento psicológico para transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).

Em setembro de 2023, as equipes de MSF começaram a fornecer serviços psicoterapêuticos especializados para pessoas com TEPT relacionado à guerra em um novo centro de saúde mental personalizado em Vinnytsia. Desde então, MSF realizou cerca de 1.400 consultas e 4.400 sessões de conscientização na clínica ou em organizações parceiras. Até o momento, 81 pacientes receberam alta do programa após completarem a terapia.

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