Reconstruindo vidas impactadas pela guerra implacável na Ucrânia

Desde a escalada dos conflitos no país, em fevereiro de 2022, quase 10 milhões de pessoas foram deslocadas.

A cidade de Kobzartsi, na província de Mykolaiv, estava próxima a umas das linhas de frente da guerra na Ucrânia. Outubro de 2023. © Nuria Lopez Torres

“Há cerca de seis meses, tudo foi bombardeado – o posto médico, a farmácia e toda a infraestrutura destruída… mas não foi o fim [da cidade]”, conta Liudmyla Karatsiuba. “Construímos casas e fortalecemos nossa comunidade.” Liudmyla mora perto de Kupiansk, uma das áreas mais voláteis na linha de frente da Ucrânia, no nordeste do país.

Depois que as forças ucranianas retomaram parcialmente a região de Kharkiv, em setembro de 2022, e a linha de frente se deslocou para mais longe de Kupiansk, uma equipe de Médicos Sem Fronteiras (MSF) chegou ao vilarejo de Liudmyla para oferecer tratamento médico. Com os bombardeios, não restaram prédios públicos para a equipe de MSF montar uma clínica, então Liudmyla concordou em deixar a equipe utilizar sua casa, onde os profissionais passaram a fornecer consultas médicas e psicológicas a pessoas de toda a comunidade.

“Ainda sigo os conselhos dados pelos psicólogos de MSF e ensino aos meus vizinhos o exercício de respiração para manter a calma e o equilíbrio”, disse Liudmyla. “Isso me ajudou a manter o foco em ser produtiva aos 75 anos. Atualmente, estou envolvida na agricultura e na criação de coelhos.”

Liudmyla Karatsiuba foi atendida pela equipe de saúde mental de MSF. Ucrânia. Dezembro de 2022. © Linda Nyholm/MSF

O exercício respiratório a que Liudmyla se refere é uma técnica simples usada para aliviar o estresse e a ansiedade. As equipes móveis de MSF na Ucrânia compartilharam exercícios respiratórios que podem ser facilmente repassados às pessoas como parte de seu trabalho para tratar e melhorar o perfil dos cuidados de saúde mental. As mesmas equipes trabalharam com a comunidade de Liudmyla para reconstruir o único ponto médico local, para onde o Ministério da Saúde do país agora já retornou.

“Agora, nosso centro médico é chamado pelos cidadãos de ‘museu’, por ser muito novo”, diz Liudmyla, sorrindo. “Agora há um lugar para ir quando precisamos de tratamento ou de remédio”.

Desde a dramática escalada da guerra na Ucrânia, em fevereiro de 2022, MSF vem conduzindo clínicas móveis nas regiões adjacentes. “A maioria dos nossos pacientes são mulheres com mais de 60 anos, muitas delas sofrendo de doenças crônicas, como hipertensão e diabetes”, diz Maksym Zharikov, coordenador-médico adjunto de MSF na Ucrânia.

Leia também: MSF atua na Ucrânia em meio à destruição causada pela guerra

“Enquanto algumas pessoas foram evacuadas, outras não puderam sair ou optaram por permanecer em suas comunidades. A necessidade urgente ainda é fornecer serviços médicos a pacientes que residem a entre 20 e 30 quilômetros das linhas de frente”, explica Zharikov.

Esta tendência tem sido uma constante desde o início da guerra em 2014: os vilarejos próximos à linha de frente estão diminuindo, com menos pessoas nas comunidades, menos suprimentos nos mercados e menos centros médicos. Após a escalada da guerra, quase 10 milhões de pessoas estão deslocadas atualmente, seja dentro da Ucrânia ou como refugiados no exterior.

Organizações como MSF conseguiram apoiar algumas dessas comunidades com suprimentos, cuidados médicos e reconstrução. No entanto, mais frequentemente, são as próprias comunidades, com a ajuda de voluntários locais, que realizam esse trabalho. Nos últimos dois anos, tornou-se cada vez mais difícil chegar a áreas isoladas por conflitos ou perto das linhas de frente.

Hoje, MSF administra clínicas móveis em 100 cidades e vilarejos diferentes perto da linha de frente nas regiões de Donetsk, Kharkiv e Kherson. Essas clínicas geralmente incluem um terapeuta, um psicólogo, um médico e um assistente social.

Apoio psicológico durante a guerra na Ucrânia

“Vejo que meu filho mais novo, Vania, precisa de mais cuidados e atenção agora”, admite Olena Beda. “Ele pede muitas vezes para ser abraçado e pergunta o quanto eu o amo.”

Olena, mãe de Vania, de 9 anos de idade, vive em um abrigo para pessoas deslocadas na região de Kirovohrad há mais de um ano com seus dois filhos, após fugir da guerra na região de Donetsk. Embora tenham se estabelecido em uma área relativamente longe das linhas de frente, drones e mísseis se tornaram uma parte implacável da vida nos últimos dois anos.

Vania começou a ter problemas para dormir, principalmente após o bombardeio. Depois que uma equipe de psicólogos de MSF começou a realizar sessões com brincadeiras em grupo para as crianças no abrigo, Olena sentiu que a ansiedade de Vania estava diminuindo. Ele conseguiu voltar para a escola e fazer novos amigos.

Vania durante uma sessão com a equipe de saúde mental de MSF. Ucrânia. Julho de 2023. © Yuliia Trofimova

“No entanto, ruídos altos repentinos e conversas sobre a guerra podem desencadear uma mudança repentina em sua condição”, explica Olena.

Nos últimos dois anos na Ucrânia, MSF forneceu 26.324 consultas psicológicas individuais. Nos abrigos para pessoas deslocadas internamente, o principal grupo de pacientes é composto por mães e seus filhos.

“No início da escalada da guerra, observamos sintomas em crianças, como ansiedade, ataques de pânico e medo”, diz Alisa Kushnirova, psicóloga de MSF. “No entanto, agora notamos que as crianças começaram a perceber a situação anormal como ‘normal’ – elas se adaptaram aos sons das explosões, embora ainda observemos reações preocupantes.”

Nossas equipes fornecem apoio psicológico às famílias, incluindo adultos. A saúde mental dos adultos é fundamental para manter um ambiente psicológico positivo dentro da família, pois a condição dos pais e responsáveis geralmente se reflete nas crianças.

Evacuações de emergência de MSF e reabilitação física

“Em 18 de abril de 2023, perdi minha perna”, diz Tetiana Doloza. “O mercado onde trabalhei como vendedora na cidade de Ukrainsk, na região de Donetsk, foi atingido por mísseis e fiquei gravemente ferida.”

Faz 10 meses que Tetiana perdeu a perna. Hoje, ela caminha em Kiev com confiança, com uma prótese e muletas para apoio. Tetiana foi evacuada do mercado para um hospital e transportada por um trem médico de MSF para a região de Lviv, onde médicos e fisioterapeutas trabalharam com ela para que usasse uma prótese.

“Quando os médicos de MSF me levaram ao hospital no oeste do país, me senti perdida. Eu não sabia como lidar com uma amputação”, lembra Tetiana. “Agora, com um membro protético, moro em Kiev com meu filho e, aos 72 anos, estou feliz por ter sobrevivido.”

Tetiana Doloza foi levada ao hospital pelo trem médico de MSF e recebeu uma prótese após a amputação de sua perna. Setembro de 2023. © MSF

“Entre março de 2022 e dezembro de 2023, o trem de evacuação médica de MSF transportou 3.808 pacientes, 310 dos quais estavam em estado crítico”, diz Albina Zharkova, coordenadora do projeto de MSF. “Em 2022 e no início de 2023, o trem de evacuação foi essencial para encaminhar as pessoas para locais e hospitais mais seguros para tratamento. Agora, as necessidades mudaram, e nossas ambulâncias fazem encaminhamentos mais curtos.”

Hoje, devido a uma mudança na dinâmica da guerra, os pacientes estão ficando no leste da Ucrânia, em vez de serem encaminhados para o oeste. Porém, nossas equipes continuam operando 15 ambulâncias que encaminham pessoas feridas por bombardeios ou pacientes com doenças crônicas para instalações médicas mais distantes da linha de frente.

Enquanto a atenção internacional sobre as consequências humanitárias da guerra na Ucrânia diminui, os confrontos na linha de frente continuam devastadores. De 2014 a 2022, mais de 14 mil pessoas foram mortas. Desde fevereiro de 2022, esse número se multiplicou, com centenas de milhares de feridos, física e psicologicamente, e quase 10 milhões de pessoas deslocadas.

 

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