“Só quero que meus pacientes encontrem felicidade em suas novas vidas”

Em Histórias de MSF, a fisioterapeuta Inna Didych fala sobre seu trabalho em projeto de reabilitação para pessoas feridas na guerra na Ucrânia.

Inna Didych e seu paciente, Andrii, durante atividade de reabilitação. © Pavlo Sukhodolskyi/Voice if America

Nesta noite, vou levar meu cachorro para uma caminhada um pouco mais longa do que o normal. Foi um dia emocionalmente desafiador no trabalho. Stalker – esse é o nome do meu cachorro – sempre percebe quando me sinto sobrecarregada e preciso de um alívio. Ele corre ao meu lado e se esfrega em minhas pernas. Muitas vezes confidencio a ele a força de espírito e de caráter que testemunho em meus pacientes.

Como fisioterapeuta de Médicos Sem Fronteiras (MSF), trabalho com uma equipe que administra um projeto abrangente de reabilitação em um hospital em Kiev. Esse projeto oferece cuidados físicos e mentais, com o objetivo de ajudar as pessoas que enfrentam ferimentos graves causados pela guerra na Ucrânia.

Entrei para MSF por recomendação de uma amiga que já trabalhava na organização. Ela me informou sobre as vagas disponíveis e as oportunidades de adquirir experiência nas mais recentes técnicas de fisioterapia.

Inna Didych atua em projeto de MSF em Kiev, na Ucrânia. ©Taras Chechel

MSF levou para a Ucrânia especialistas experientes que trabalharam durante conflitos armados internacionais e guerras em vários países, tratando pacientes com os tipos de ferimentos que estamos vendo agora. Embora a guerra na Ucrânia esteja em andamento desde 2014, a demanda por tratamento para feridos de guerra não era comparável à situação atual. Esses médicos me deram instruções e orientações valiosas sobre a realização de exercícios de reabilitação para pacientes com lesões e amputações.

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Inicialmente, foi um desafio aceitar o que eu estava vendo – pessoas com ferimentos que lembravam os da Segunda Guerra Mundial. Esses pacientes chegam aos hospitais às dezenas. Lembro vividamente de uma noite, no início da escalada brutal da guerra na Ucrânia, quando um trem inteiro transportando pessoas com lacerações graves, ferimentos a bala e amputações chegou a Kiev vindo da linha de frente. Algumas delas foram encaminhadas para o hospital onde estamos trabalhando com o projeto de reabilitação.

Às vezes, os pacientes que chegam ao hospital estão deprimidos, não querem ver ninguém e não estão com disposição para a reabilitação; eles apenas ficam deitados na cama do hospital. Muitas vezes, é preciso muita perseverança para convencê-los de que sempre há esperança. Explico a importância da reabilitação precoce e de começarmos a fisioterapia para que eles possam se adaptar a uma vida com o novo corpo.

Inna Didych atua como fisioterapeuta de MSF no projeto de reabilitação de pacientes feridos de guerra, em Kiev. © Taras Chechel

Nos últimos seis meses, trabalhei com mais de 50 pacientes, cada um com uma história única e sua própria jornada de recuperação. Hoje, me encontrei com Andrii, um homem que está se preparando para receber próteses após sofrer ferimentos graves enquanto estava na linha de frente dos combates, em abril de 2023. Infelizmente, ele perdeu o braço e a perna do lado direito, e quase toda a visão.

Andrii e eu estamos navegando juntos em uma jornada desafiadora. Antes de lutar na guerra, ele trabalhava como especialista em tecnologia da informação. Depois de ser ferido, ele hesitava em sair da cama e tinha dificuldade em imaginar um futuro para si mesmo. Com o apoio de um psicólogo e o envolvimento ativo de sua mãe, iniciamos a reabilitação.

Incentivei Andrii a ficar em pé sobre a perna esquerda e dar pequenos passos com o andador, incorporando exercícios de respiração à medida que ele avançava. Gradualmente, passamos para a sala de fisioterapia. Começamos os exercícios com ele em uma cadeira de rodas – nosso foco inclui o alongamento dos músculos do abdômen, do tronco e dos membros, além de exercícios específicos para evitar restrições de mobilidade das articulações que poderiam impedir o uso de próteses.

Inna Didych e Andrii durante atividade de reabilitação. © Pavlo Sukhodolskyi/Voice if America

A preparação do coto (parte restante do membro amputado) para uma prótese pode ser acompanhada de dores agudas. Mas se não trabalharmos as articulações a tempo, elas vão se estreitar e será impossível colocar uma prótese – o coto não vai segurar. Sou testemunha de como Andrii e outros pacientes superam essa dor e acho isso admirável.

Nos momentos em que ele se sente emocionalmente esgotado, sugiro tarefas simples como “fazer uma andorinha”, que consiste em se equilibrar em uma perna só e se imaginar voando. Incluo humor e palavras de apoio para levantar o ânimo de Andrii.

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Para nos distrairmos, muitas vezes conversamos sobre futebol e as conquistas da equipe nacional ucraniana. Eu costumava jogar futebol profissional e compartilho histórias de lesões que sofri durante minha carreira e sobre como as superei. Digo a Andrii e a outros pacientes que a confiança pessoal na vitória – sobre a dor, as dificuldades e as condições desafiadoras – é fundamental.

Às vezes, as emoções me dominam e, quando chego em casa, posso chorar sozinha na companhia do meu cachorro. Eu o tranquilizo, dizendo: “Não se preocupe, Stalker, estou bem”. Só quero que meus pacientes não percam a fé em si mesmos e encontrem felicidade em suas novas vidas. O que por vezes parece pouco em nosso mundo é o necessário para eles: aprender a andar novamente, dirigir um carro, jogar futebol, segurar uma criança nos braços ou correr com um cachorro no parque…”

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Após a nossa sessão, Andrii foi ao centro de próteses. Ele me enviou um vídeo de si mesmo sendo medido para receber uma nova perna e braço, dizendo: “Bem, agora ninguém pode me parar!” Nós dois nos sentimos felizes naquele momento.

Muitas vezes, sinto o que chamo de “cansaço satisfatório” após um dia de trabalho. É a necessidade de uma recarga emocional, mas meu coração está feliz pelo sucesso dos pacientes durante o processo de reabilitação. Eu me energizo rapidamente, especialmente quando meu cachorro, Stalker, está por perto. Enquanto caminhamos por outro beco, respiro o ar fresco e depois vou para casa, pronta para uma noite tranquila. Amanhã, estarei pronta para começar um novo dia com meus pacientes.

Sobre Inna

Inna Didych é fisioterapeuta de Médicos Sem Fronteiras (MSF). Antes da escalada da guerra na Ucrânia, ela trabalhou como fisioterapeuta no departamento de reabilitação do Hospital Regional de Kiev, cuidando de pacientes que tiveram Covid-19, lesões cerebrais, derrames e ataques cardíacos. Ela tem o título de Mestre em Esportes da Ucrânia, especializada em futebol, é treinadora profissional e árbitra da FIFA.

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