Saúde mental na Etiópia: combatendo o estigma e fornecendo tratamento a refugiados da Eritreia

No norte do país, os campos de refugiados de Hitsats e Shimelba abrigam cerca de 16 mil eritreus que fogem da violência

Saúde mental na Etiópia: combatendo o estigma e fornecendo tratamento a refugiados da Eritreia

Ephraim está em uma das pequenas salas de aconselhamento do centro de saúde mental de Médicos Sem Fronteiras (MSF), no campo de refugiados de Hitsats, no norte da Etiópia. A estação chuvosa e fria deu uma trégua ao clima árido e quente que caracteriza esta área semidesértica. Uma tempestade tropical cai impetuosa e o som da água batendo no telhado de metal da estrutura é ensurdecedor.

Embora difícil de ouvir pelo barulho, a voz de Ephraim é firme e seus olhos demonstram clareza e determinação. Ser capaz de contar sua história em detalhes enquanto permanece emocionalmente estável é um passo importante em seu processo terapêutico.

“Eu estudava, estava no nono ano, e sabia que em breve tinha que prestar serviço militar. Para algumas pessoas, o período no exército é interminável e, enquanto você está lá, eles não lhe pagam quase nada”, diz ele. “Para mim, ficou claro que eu não tinha futuro, nem um futuro em que pudesse escolher livremente o que fazer, ser, e sustentar minha família. Então decidi ir embora, como muitos outros eritreus”, acrescenta. Hoje ele é um jovem adulto de 17 anos de idade, mas quando deixou a Eritreia, ele era apenas uma criança de 14 anos.

Todos os meses, aproximadamente 5 mil pessoas fogem da Eritreia, muitas delas adolescentes como Ephraim. O serviço militar indefinido, obrigatório e imposto a todos os eritreus é um fator preponderante para aqueles que fogem do país. Para aqueles que ficam, a “escolha” tem um custo: detenção arbitrária, violência e intimidação são algumas das formas usadas contra aqueles que não estão de acordo com o sistema.

Ephraim sofreu abuso e foi detido tanto na Eritreia quanto em sua busca por uma vida melhor. Em um momento de sua jornada, ele foi detido no Sudão enquanto tentava chegar à Líbia. Com pouca comida e água, sua viagem de 13 dias pelo deserto quase o matou. Ainda assim, ele foi espancado e preso durante várias semanas antes de ser enviado de volta à Eritreia, onde foi preso novamente. “A prisão na Eritreia era como um buraco no chão, sem janelas nem luzes. Havia mais de 80 pessoas na sala comigo. Não tínhamos espaço suficiente para nos deitar, então passávamos todas as noites sentados e nos revezando para dormir”, ele conta. Sua mãe conseguiu libertá-lo e ele tentou deixar o país novamente. “Os soldados me prenderam na fronteira, me espancaram duramente e me mandaram de volta à prisão. As lesões do espancamento estavam piorando. Comecei a tossir e não conseguia dormir porque o chão era muito duro e doía. Não recebi ajuda médica até minha situação ficar muito ruim. Nesse momento fui enviado ao hospital. Recebi tratamento e fui enviado de volta à prisão”, relata. Finalmente, em sua terceira tentativa, Ephraim conseguiu chegar aos campos de refugiados no norte da Etiópia.

Apesar dos desafios extremos, sua história não é única. Muitos outros eritreus passam por situações semelhantes. Embora experiências como essas possam certamente causar problemas físicos, as consequências para a saúde mental são muito mais complexas de identificar e tratar, e seu impacto pode ser devastador. Em 2015, em um esforço para oferecer assistência médica aos refugiados da Eritreia, MSF iniciou um projeto de saúde mental para atender as populações dos campos de refugiados de Hitsats e Shimelba. Com cerca de 2.300 pessoas chegando mensalmente, os campos no norte da Etiópia são um dos primeiros destinos para os eritreus que deixam seu país.

Robel Araya, supervisor de saúde mental de MSF no campo de Hitsats, conhece a situação enfrentada pelos refugiados eritreus. “A maioria das pessoas que vemos nos campos passam por experiências traumatizantes. Deixar a Eritreia é perigoso e alguns deles tentam diversas vezes antes de conseguirem. Muitos desenvolvem depressão, ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático ligados a tortura, violência e abuso. Essas condições têm um efeito muito negativo em suas vidas. Nossos serviços de saúde mental podem ajudá-los a se sentir melhor”, diz ele.

MSF oferece aconselhamento e atendimento psiquiátrico a pacientes internados e atendidos no ambulatório e uma ampla gama de atividades terapêuticas, incluindo sessões terapêuticas e de psicoeducação, nas quais os pacientes podem discutir sobre pelo que estão passando e receber informações detalhadas sobre suas condições e como superá-las. Perceber que outras pessoas estão passando por problemas semelhantes os ajudam a se sentirem menos isolados.

Como é o caso da maioria dos contextos humanitários, as crianças são um dos grupos mais vulneráveis. “Cerca de 40% da população do campo tem menos de 18 anos. Metade delas está viajando sozinha ou foi separada de suas famílias. A situação é bastante delicada. Elas tendem a sofrer de ansiedade pela separação e, em alguns casos, tiveram experiências sexuais precoces difíceis ou confusas. Aqui, oferecemos atividades especificamente planejadas para elas, como esporte, desenho, sessões de teatro e aconselhamento especializado”, diz Robel Araya.

A população nos campos é transitória. Estima-se que cerca de 80% dos refugiados eritreus irão se deslocar para o Sudão em direção à Líbia pela rota do Mediterrâneo Central no prazo de 12 meses após a chegada aos campos de refugiados etíopes. As duras condições de vida nos campos, a falta de perspectivas futuras, o desejo de se reunir com familiares em outros países e a idade média dos jovens parecem contribuir muito para esses movimentos secundários.

“Nossas atividades de divulgação na comunidade precisam ser constantes porque a população está sempre mudando. Os poucos que permanecem no longo prazo ficam porque não têm dinheiro para se deslocar. Também vemos pessoas que tentaram sair, mas foram detidas no Sudão ou na Líbia, onde presenciaram e foram submetidas a coisas horríveis e depois mandadas de volta à Etiópia ainda mais traumatizadas do que antes”, diz Robel.

Um dos principais desafios é convencer as pessoas a buscar apoio. O medo de ser estigmatizado como “fraco” ou “louco” pela comunidade impede que muitos busquem ajuda. “No começo, encontramos muitas dificuldades para falar sobre saúde mental com refugiados. Por isso, decidimos contratar agentes comunitários de saúde mental da própria comunidade para oferecer conscientização, educação e desestigmatização da saúde mental de maneira culturalmente adequada”, diz ele.

Todos os dias, os agentes comunitários vão de abrigo a abrigo e explicam em detalhes como os problemas de saúde mental se manifestam, a disponibilidade do tratamento e porque é importante procurar ajuda. Essas sessões geralmente envolvem a família e são realizadas na língua nativa dos pacientes.

“Agora temos uma equipe de 26 agentes bastante motivados. Muitos deles foram nossos pacientes e experimentaram em primeira mão os benefícios do aconselhamento e do tratamento. Isso ajuda muito nosso trabalho. Sendo eritreus, eles sabem como abordar o tópico adequadamente com o resto da população. O compromisso vem de querer ajudar sua própria comunidade”, explica Robel Araya.

Simon é um dos agentes comunitários de MSF no campo de Hitsats. Como outros profissionais da equipe, ele é refugiado eritreu e foi paciente de MSF. “Quando cheguei ao acampamento, não estava bem. Eu revivia constantemente todas as coisas que passei quando tentei atravessar a fronteira, quando estava na cadeia e quando presenciei tiroteios, tortura e abuso. O aconselhamento realmente me ajudou a recuperar minha vida e percebi que poderia ajudar outras pessoas”, diz ele.

“Trabalhar como assistente social no programa de saúde mental de MSF aqui no campo de Hitsats é a única coisa que me dá estabilidade e motivação. Ter um propósito me ajudou a não pensar muito em novos deslocamentos e no fato de que sinto falta da minha família, dos meus amigos e da minha casa. Muitas pessoas sofrem de trauma e problemas de saúde mental. Quando eu vejo que eles também se sentem melhor por causa do apoio que ofereço através do meu trabalho, sinto que ficar aqui vale a pena. Mesmo não tendo conseguido me tornar enfermeiro como desejava quando estava na Eritreia, ainda sou capaz de ajudar as pessoas e isso me deixa muito feliz”, afirma Simon orgulhosamente.

Os campos de refugiados de Hitsats e Shimelba abrigam, respectivamente, cerca de 6 mil e 10 mil pessoas. Nos campos, MSF oferece anualmente cerca de 2.800 sessões individuais de aconselhamento e 3.600 consultas psiquiátricas. Além do componente de saúde mental, MSF oferece serviços de saúde primária e secundária, incluindo atendimento 24 horas, 7 dias por semana, no campo de refugiados de Hitsats em parceria com a Administração Etíope para Assuntos de Refugiados e Repatriados (ARRA). Também oferece serviços de encaminhamento de pacientes emergenciais ao hospital Shire. Conscientização sobre saúde reprodutiva e prevenção de HIV são oferecidas no nível comunitário.

*Nome alterado a pedido do mesmo

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