Rohingyas em Bangladesh: necessidades médicas aumentam, mas financiamento permanece estagnado

MSF pede aumento de financiamento para resposta humanitária no maior acampamento de refugiados do mundo.

© Victor Caringal/MSF

Seis anos após um êxodo sem precedentes da população Rohingya* de Mianmar para Bangladesh, as necessidades médicas no maior acampamento de refugiados do mundo continuam urgentes e os cuidados cada vez mais inadequados. Em um contexto global marcado por múltiplas crises em grande escala, o financiamento internacional da resposta humanitária para cerca de 1 milhão de pessoas Rohingya está sob crescente pressão ano após ano.

O povo Rohingya é a maior população apátrida do mundo, isto é, são pessoas que não têm sua nacionalidade reconhecida. A situação é muito preocupante para essa população, que depende quase inteiramente de ajuda humanitária devido à falta de status legal, o que impossibilita os rohingyas de trabalhar legalmente para garantir o sustento próprio ou de suas famílias.

Apesar de ser um dos maiores prestadores de cuidados de saúde nos acampamentos, as equipes de Médicos Sem Fronteiras (MSF) atingiram sua capacidade em várias áreas, o que nos obrigou a estabelecer critérios de admissão mais rigorosos para lidar com as altas necessidades médicas dos pacientes que chegam às nossas instalações.

 

Seis anos após o êxodo, o “temporário” perdura

Em apenas algumas semanas, em agosto de 2017, mais de 700 mil homens, mulheres e crianças fugiram da violência em massa que os atingia, perpetrada por militares no estado de Rakhine, localizado na parte noroeste de Mianmar. Essas pessoas encontraram refúgio nas colinas do distrito de Cox ‘s Bazar, em Bangladesh.

Seis anos depois, o que era uma solução temporária para oferecer refúgio às pessoas que escaparam da violência angustiante tornou-se uma crise prolongada sem solução significativa à vista.

Embora os acampamentos agora tenham estradas melhores, mais latrinas e água potável do que no pico inicial da emergência, as pessoas ainda vivem em abrigos superlotados e a construção de estruturas permanentes não é permitida.

Incêndios destruíram centenas ou até milhares de abrigos, apresentando um risco contínuo para a segurança das pessoas que vivem nos acampamentos. Como a área é propensa a desastres socioambientais, os abrigos, feitos de bambu e plástico, são frequentemente danificados e destruídos por ventos fortes, chuvas torrenciais e deslizamentos de terra.

Além do ambiente de extrema vulnerabilidade, a impossibilidade de evacuar os acampamentos para áreas mais seguras é outro aspecto preocupante. Por exemplo, durante o ciclone Mocha, em maio deste ano, a maioria dos hospitais de MSF precisou fechar por dois dias, pois suas estruturas semipermanentes ameaçavam sucumbir.

Vista dos abrigos no complexo de Cox’s Bazar, onde o acesso inadequado à água potável e as más condições de saneamento agravam os riscos para a saúde, levando a surtos como o de sarna. © Victor Caringal/MSF

 

Cada vez menos recursos financeiros

Por enquanto, o retorno dos refugiados Rohingya para Mianmar continua sendo um sonho, pois, para isso, eles precisam da garantia de seus direitos, incluindo o reconhecimento de sua cidadania e o retorno às suas terras. O tempo parece estar parado. A vida nos acampamentos parece um dia sem fim.

Os acampamentos estão rodeados por cercas e arame farpado desde a pandemia da COVID-19. Os rohingyas não têm permissão para trabalhar ou deixar o local. O acesso a alimentos, água e cuidados de saúde para 1 milhão de pessoas apátridas depende da ajuda humanitária internacional. Mas a assistência é cada vez menos financiada por doadores internacionais.

Nos últimos dois anos, o compromisso dos Estados-membros das Nações Unidas (ONU) com o apelo de financiamento humanitário da ONU tem diminuído: de cerca de 70% em 2021 para 60% em 2022 e aproximadamente 30% até o momento, em 2023.

Em março, os alimentos terapêuticos do Programa Mundial de Alimentos foram reduzidos do equivalente a 12 dólares por pessoa por mês para 10 dólares. Depois, em junho, foi reduzido novamente, para apenas 8 dólares.

As equipes de MSF testemunham as dificuldades enfrentadas nos centros de saúde administrados por várias organizações dependentes desse financiamento para recursos humanos, suprimentos de medicamentos e capacidade de garantir o acompanhamento dos pacientes. A manutenção regular das infraestruturas de água e saneamento também é um desafio, tornando problemáticas as condições de higiene e o acesso à água potável em muitos acampamentos.

Necessidades médicas crescentes

As condições de vida insalubres complicam consideravelmente a situação sanitária, levando a vários problemas de saúde. No ano passado, o número de pacientes com dengue aumentou 10 vezes em relação ao ano anterior. No início de 2023, vimos o maior aumento semanal de pacientes com cólera desde 2017. Das pessoas que vivem nos acampamentos, 40% sofrem de sarna, de acordo com os resultados de uma pesquisa há muito aguardada, apresentada pela coordenação do setor de saúde do complexo em maio. O percentual está bem acima do limite de 10%, recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para iniciar a administração de medicamentos em massa com o objetivo de conter surtos de sarna.

Essa situação colocou uma pressão crescente sobre os serviços de MSF nos últimos dois anos. Nossas equipes vêm tratando as consequências de condições de vida difíceis desde a chegada das pessoas, há seis anos: doenças infecciosas, infecções respiratórias, intestinais e de pele.

Ao longo dos anos, também vimos uma necessidade crescente de tratar doenças duradouras – como diabetes, hipertensão ou hepatite C -, o que está ligado principalmente a uma falta crônica de acesso a cuidados de saúde para os Rohingya em Mianmar.

Após um grande surto de sarna em Cox’s Bazar, profissional de MSF fornece medicamentos a Soyed Ullah, que sofre da doença na pele. Bangladesh, 14 de março de 2023. © Farah Tanjee/MSF

O número de pacientes que chegam ao ambulatório do “hospital na colina”, construído por MSF no meio dos acampamentos em 2017, aumentou 50% em 2022. Essa situação se soma ao encerramento de vários centros de saúde na área durante o ano passado devido à falta de financiamento e a uma epidemia desenfreada de sarna.

No “hospital na colina”, bem como em nosso hospital materno-infantil em Goyalmara, o número de internações pediátricas aumentou muito de janeiro a junho de 2023 em comparação com o mesmo período do ano passado. Em julho, enquanto a alta temporada anual de necessidades médicas estava apenas começando, nossas internações hospitalares pediátricas estavam esgotadas.

 

Como os pacientes conseguirão lidar com essa situação?

MSF não é diretamente afetada pela crise de financiamento de doadores internacionais, mas a capacidade de nossos serviços de absorver a crescente demanda por cuidados está atingindo seus próprios limites. O aumento no número de consultas inevitavelmente pressiona nossos recursos humanos, nossa gestão de leitos hospitalares e nossa disponibilidade de suprimentos médicos.

Para lidar com isso, nossas equipes precisaram adotar duas novas abordagens, cada uma com suas limitações. No caso de certas condições, como doenças não transmissíveis (DNT) e sarna, as necessidades são tão altas que nossas instalações não podem atender a todos os pacientes que vêm às nossas clínicas. No ano passado, nossas equipes foram obrigadas a adotar uma triagem mais rigorosa de acordo com o nível de gravidade das doenças ou a origem geográfica dos pacientes, pois os acampamentos são divididos por setor. Nossas equipes precisam encaminhar casos menos urgentes para outros centros de saúde, que muitas vezes apresentam limitações no tratamento de DNTs ou sarna devido à falta de medicação disponível.

No caso da pediatria, e em antecipação à alta temporada de necessidades médicas, novos leitos temporários foram instalados para acomodar mais pacientes nas enfermarias pediátricas de Goyalmara. Desde o ano passado, nossas equipes também tiveram que admitir cada vez mais pacientes pediátricos em nosso “hospital na colina”, que normalmente não atende a esse público. Isso requer leitos adicionais no hospital e pressiona os departamentos de internação do hospital para outros pacientes. Além de não ser uma solução satisfatória a longo prazo, as equipes de MSF temem que, mesmo a curto prazo, com o início da alta temporada, o aumento dos leitos não seja suficiente para cobrir todas as necessidades.

Enquanto os Rohingya em Bangladesh estiverem confinados em acampamentos e presos em um ciclo de dependência da ajuda humanitária, é imperativo que os doadores internacionais aumentem significativamente suas contribuições financeiras para fornecer apoio adequado e evitar novas consequências irreversíveis para a saúde física e mental das pessoas.

 

* Os Rohingya são a maior população apátrida do mundo e uma das minorias étnicas mais perseguidas. Desde que tiveram sua cidadania retirada em seu lugar de origem, Mianmar, em 1982, eles sofreram ciclos de extrema violência direcionada e enfrentam restrições em todos os aspectos de suas vidas, incluindo liberdade de movimento, acesso a oportunidades de subsistência, educação e saúde.

 

 

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