Relatos pessoais de uma emergência de saúde esquecida na República Centro-Africana

MSF pede ação de outros atores humanitários no país, onde a expectativa de vida é de pouco mais de 54 anos de idade.

Novo posto de saúde de Nganzi, construído por MSF, atrás dos escombros do antigo posto, que não possuía instalações adequadas para responder às necessidades da população. © Julien Dewarichet ‌

Impactada por anos de conflitos, a República Centro-Africana (RCA) enfrenta uma crise de saúde que dura décadas. Em um país com 5,5 milhões de pessoas, o acesso a cuidados médicos é praticamente impossível, e a expectativa de vida é de pouco mais de 54 anos de idade. Durante anos, Médicos Sem Fronteiras (MSF) repetiu pedidos por mais ações de governos e atores humanitários. No entanto, a situação só piora, e nossas equipes e as comunidades que atendemos ficam se perguntando: onde está todo mundo?

As entrevistas com pacientes, profissionais e líderes comunitários lançam luz sobre a situação crítica de saúde na RCA, que inclui:
• Falta de cuidados preventivos para a desnutrição, o que leva crianças a serem admitidas com desnutrição aguda grave nos hospitais, correndo risco de morte;
• Pessoas impossibilitadas de acessar água própria para consumo, resultando em altos níveis de doenças de veiculação hídrica;
• Pessoas sem condições financeiras de arcar com os valores de consultas médicas ou de tratamentos de saúde perto de suas casas;
• Gestantes que dão à luz em condições deploráveis e sem assistência médica qualificada, levando a mortes evitáveis;
• Equipe médica lutando para fornecer um padrão mínimo de atendimento, mesmo sem os equipamentos mais básicos.

Essa realidade ocorre todos os dias em muitas partes da RCA. Leia os relatos:

É como cair no vazio.”
– Louis-Marie Sabio, diretor do hospital de Bakouma, na RCA.

Louis-Marie Sabio, diretor do hospital de Bakouma, apoiado por MSF na RCA. Foto: Julien Dewarichet

No início de 2023, Louis-Marie Sabio assumiu a gestão do hospital de Bakouma, uma instalação de saúde supostamente de alto nível, capaz de fornecer condições para a realização de cirurgias complexas. Na chegada, o médico, que é de Bangassou, ficou impressionado com a magnitude do desafio que o esperava.
“Por 12 anos, nenhum médico esteve presente neste hospital”, diz Sabio. “Quando a gente fala de hospital, é um termo generoso: a unidade carece de tudo. Não há eletricidade, colchões suficientes, ambulância… e nenhuma cerca [para proteger a instalação]. Os animais podem vagar pelas alas. Quando cheguei, senti como se estivesse caindo em um vazio: não havia nem mesmo um termômetro, um monitor de pressão arterial ou um oxímetro de pulso. Não havia medidor de glicose. Temos um painel solar para alimentar duas lâmpadas na sala de cirurgia, que também carece de tudo. Sem eletricidade, não podemos nem fazer raios-X ou ultrassons. E a farmácia, não vamos nem comentar…”

Apesar do estado do hospital, Sabio está fazendo seu melhor para mudar as coisas. Ele é o único profissional da equipe com treinamento médico, pois o restante é composto por profissionais de primeiros socorros e parteiras tradicionais.

“A única coisa que posso fazer, por enquanto, é treinar a equipe e pressionar os outros para nos ajudar a melhorar as coisas, para que um dia possamos recrutar profissionais qualificados. Enquanto isso, fazemos o que podemos, mas não podemos nem cumprir a função básica que um hospital deve realizar, de estabilizar os pacientes.”

Sabio no hospital de Bakouma. Foto: Julien Dewarichet

O hospital de Bakouma é uma das 18 unidades de saúde na prefeitura de Mbomou. MSF fornece apoio por meio do fornecimento de vacinas e pelo financiamento de encaminhamentos de pacientes para o hospital de Bangassou, a cerca de 130 km de distância. Nenhuma outra organização médica trabalha na área, que fica perto de Nzacko, conhecida por sua insegurança crônica. O hospital de Bakouma foi saqueado várias vezes nos últimos anos.

“Às vezes, temos que encaminhar pacientes sem saber se eles sobreviverão”, diz Sabio. “Outro dia, tive que transferir urgentemente um bebê para Bangassou de moto, pois não temos ambulância. Não conseguimos estabilizar o bebê aqui. Ele morreu a alguns quilômetros daqui, na motocicleta. Tudo porque a capacidade técnica aqui não nos permitiu estabilizá-lo.

A tarefa que aguarda Sabio e sua equipe parece imensurável. Mas o médico, um ex-profissional de MSF, não se sente derrotado.

“Quando saí de MSF para vir para cá, sabia que perderia todo o conforto de trabalho que tinha naquela época”, diz ele. “Em Bangassou, eu tinha tudo à mão para tratar as pessoas. Mas saber que um hospital estava operando sem um médico, isso não é aceitável. Foi isso que me motivou a vir aqui. Não consigo me imaginar desistindo da luta. Abandoná-la seria como dizer a toda essa população que eles não importam, que os estamos abandonando. Isso não é possível. Não é humano”.

Quando não tenho condições de alimentá-lo, ele tem recaídas.”
– Annie Guemba, mãe de paciente hospitalizado com desnutrição.

O bebê de Annie já foi admitido no hospital de Bangassou três vezes por desnutrição. Foto: Julien Dewarichet

O bebê de Annie foi tratado no hospital de Bangassou por desnutrição aguda grave três vezes durante sua ainda curta vida.

“Ao nascer, ele não podia ser amamentado”, conta Annie. “A equipe médica aqui o tratou e me deu leite nutritivo até que eu pudesse amamentá-lo. Mas eu não conseguia, porque estava fraca. Eu tinha muito pouco para comer. Quando o suprimento de leite acabou, consegui comprar mais uma lata, mas não podia pagar por mais. Eu simplesmente não tinha condições. Tentei alimentá-lo com mingau, mas não funcionou. ”

A desnutrição é um sério problema de saúde na RCA para adultos e crianças, levando a inúmeras complicações de saúde. De acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas), quase 300 mil crianças menores de 5 anos de idade e mais de 140 mil mulheres que amamentam estão com desnutrição que requer tratamento.

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“A desnutrição é a principal causa de admissão na unidade de terapia intensiva pediátrica do hospital de Bangassou”, diz Cyrille-Dieu Veille Zongo, que coordena a unidade. “Havia uma ONG que administrava programas de nutrição e cuidava de crianças com desnutrição moderada em Bangassou. Mas eles pararam, e ninguém mais está fazendo esse trabalho agora. Como resultado, muitas crianças que foram estabilizadas no hospital e receberam alta retornam devido à falta de medidas preventivas do lado de fora. É um ciclo sem fim”, lamenta o coordenador.

“É só no hospital que ele ganha peso, graças ao tratamento”, diz Annie. “Assim que não posso mais arcar com os custos para alimentá-lo, ele recai. Então, sou forçada a voltar de novo e de novo”.

As mulheres estão isoladas, sem ninguém treinado para cuidar delas.”
– Odette Yohoro, obstetriz de MSF em Bangassou.

Odette Yohoro, obstetriz da equipe móvel de MSF. Foto: Julien Dewarichet

Odette Yohoro é obstetriz-supervisora da equipe móvel de MSF em Bangassou, fornecendo apoio essencial aos cuidados de saúde materno-infantis e em várias unidades de saúde assistidas por MSF.

“Este trabalho é vital, uma vez que as mulheres nestas áreas muitas vezes não têm acesso a profissionais qualificados”, diz Odette. “A situação é terrível, com falta de equipe qualificada, medicamentos e equipamentos adequados. Em alguns postos de saúde, nem sequer há leitos, forçando as mulheres a trazerem os seus próprios tapetes para realização do parto”.

No início deste ano, MSF começou a renovar e equipar as unidades de parto em seis postos de saúde na província de Mbomou, com o objetivo de garantir que as mulheres possam receber melhores cuidados pré-natais e dar à luz em um ambiente com condições de higiene adequadas e com uma equipe treinada.
“As parteiras tradicionais também estão recebendo treinamento”, diz Odette. “Muitas delas não têm experiência médica, levando a situações potencialmente fatais, pois podem não reconhecer complicações e atuar de forma equivocada. O treinamento é essencial para equipá-las com conhecimentos básicos e habilidades essenciais”.

Por muitos anos, a República Centro-Africana teve algumas das maiores taxas de mortalidade materno-infantis do mundo.

“Lembro-me de uma mulher que foi transferida para o hospital de Bangassou”, diz Odette. “Ela havia sofrido uma ruptura uterina, mas a parteira de seu vilarejo só forneceu ocitocina para aliviar a dor. A condição da mulher piorou, ela morreu na chegada ao hospital. Infelizmente, a falta de profissionais qualificados e recursos essenciais leva a consequências devastadoras”.

A presença das equipes médicas de MSF na região de Bangassou, sem dúvida, fez a diferença. Mas as necessidades de cuidados médicos de mulheres e crianças são vastas, e é necessário ter mais assistência na área.

“O empobrecimento continua a ser um desafio significativo também”, diz Odette. “Quando os serviços para realização de partos são fornecidos gratuitamente, as mulheres são mais propensas a procurar atendimento, mesmo que as instalações pareçam mal equipadas ou em más condições. Portanto, o apoio e a ajuda a esses centros de saúde são cruciais para causar um impacto significativo na saúde de mães e crianças na região”.

Eu não tinha dinheiro, então eles me expulsaram e insultaram.”
– Nadia Sasango, mãe de paciente atendido por MSF em Bangassou.

Nadia e os dois filhos. Foto: Julien Dewarichet

Nadia e seus dois filhos estavam se preparando para deixar o hospital universitário regional de Bangassou, onde Guy, de 4 anos de idade, havia recebido tratamento após ter entrado em coma.

“Esta é a segunda vez que estamos aqui”, diz Nadia, uma agricultora de Bao, vilarejo a mais de 100 quilômetros de Bangassou. “Guy tem diabetes tipo 1, e ninguém em casa pode tratá-lo. A primeira vez que teve um ataque, ele entrou em coma, e eu vim para cá. MSF o tratou e me deu insulina para levar ao hospital perto da minha casa, para que pudessem manter o medicamento na temperatura adequada e administrar as injeções. Mas, quando cheguei lá, eles se recusaram porque queriam que eu pagasse. Eu não tinha dinheiro, então eles me expulsaram e me insultaram”, relata Nadia.

Mais de 70% da população da RCA vive abaixo da linha da pobreza, com menos de 2 dólares por dia, e as barreiras financeiras para acessar os cuidados de saúde são um enorme problema no país. De acordo com a ONU, quase 40% da população diz não ter condições de pagar por serviços de saúde.

“Depois, Guy adoeceu novamente”, diz Nadia. “Eu pensei que ele tinha malária. Eu o levei para o posto de saúde do vilarejo, mas quando o viram, eles o encaminharam para o hospital Gambo [que é apoiado por MSF]. A equipe de lá transferiu Guy imediatamente para o hospital de Bangassou. Ele estava em coma de novo.”

Guy passou dois dias sob cuidados intensivos antes de ser transferido para a enfermaria pediátrica do hospital de Bangassou. Após várias semanas de tratamento, o menino está pronto para ir para casa com a mãe e o irmão mais novo. Ele precisará de insulina pelo resto da vida, um hormônio que só está disponível no hospital de Bangassou por meio de MSF. A partir de agora, as equipes de MSF enviarão suprimentos de insulina para o hospital Gambo para Guy. Nadia decidiu mudar sua família para mais perto do hospital, para evitar que seu filho sofra novas recaídas.

Estamos acostumados a fugir.”
Kalil Djouma, coordenador de mecânica de MSF em Bangassou.

Kalil Djouma , coordenador de mecânica de MSF. Foto: Julien Dewarichet

Kalil Djouma é o coordenador de mecânica de MSF em Bangassou. Ele trabalha na organização desde 2014.
“Antes de ingressar em MSF, trabalhei como motorista pelo país. Me familiarizei com MSF porque já tinha visto seus veículos em Bossangoa. Quando me inscrevi aqui, sabia que iríamos dirigir em regiões difíceis, às vezes, mas queria me juntar à equipe e apoiar o trabalho. Dirigir foi minha forma de contribuir para o cuidado com a população.”

Kalil começou integrando uma equipe de seis motoristas de MSF. No entanto, seu conhecimento sobre as necessidades mecânicas dos veículos e equipamentos o levou a se tornar o mecânico da equipe.
Em 2017, a vida de Kalil tomou um rumo inesperado. A violência contra muçulmanos cometida por um grupo armado o forçou a deixar sua casa e procurar abrigo em um local protegido por forças de paz da ONU, em frente à catedral de Bangassou.

“De repente, me vi morando em um local onde meus colegas de MSF administravam clínicas móveis para fornecer tratamento às pessoas”, diz Kalil. “Eu não queria ficar confinado a esse local, então eu viajava de um lado para o outro para o hospital todos os dias para trabalhar.”

• Assista: Dez anos de violência da República Centro-Africana

Junto a milhares de outras pessoas, Kalil e sua família ficaram no acampamento por três anos, por medo da violência. Em 2020, a situação melhorou por um tempo. Mas, em janeiro de 2021, a família dele precisou fugir novamente – dessa vez para a República Democrática do Congo – enquanto uma coalizão de grupos armados avançava em direção a Bangassou.

“Estamos acostumados a fugir”, diz Kalil, cansado. “Felizmente, está tudo bem agora. E espero que continue assim”.

“Sem ajuda, não há saída.”
Jean-Baptiste Kpakamira-Wilété, coordenador de posto de saúde apoiado por MSF na RCA.

Jean-Baptiste Kpakamira-Wilété. Foto: Julien Dewarichet

Jean-Baptiste Kpakamira-Wilété é coordenador do posto de saúde em Ndegue Douma, um vilarejo a cerca de 25 km de Bangassou. O local é crucial para o bem-estar de quase 3.700 pessoas que vivem nos quatro vilarejos mais próximos, assim como um número significativo de congoleses que atravessam o rio, saindo República Democrática do Congo, em busca de cuidados médicos.

“MSF nos apoia desde 2020”, diz Jean-Baptiste. “Antes disso, tivemos que enviar a maioria dos nossos pacientes para o centro de saúde de Yongofongo, a 8 km daqui”.

Construída pela comunidade, a instalação possui uma farmácia, uma maternidade, uma sala de consulta e uma sala de observação com dois leitos. Do lado de fora, um pequeno abrigo serve como sala de espera e triagem.

“MSF nos ajuda a vacinar as crianças e nos fornece medicamentos para tratá-las contra malária, diarreia e doenças respiratórias”, explica Jean-Baptiste. “Isso nos ajuda enormemente, porque essas doenças são muito prevalentes na área, especialmente malária e diarreia. Antes, tínhamos que encontrar os meios para comprar esses medicamentos, mas muitas vezes não era possível. As crianças ficavam fracas e precisavam ser transferidas para longe. As coisas estão muito melhores agora, e os pais estão felizes porque os cuidados médicos são gratuitos”.

“Mas não são apenas as crianças que adoecem”, acrescenta. “O que devemos fazer pelos outros? A população local vive da agricultura de subsistência e, muitas vezes, não tem meios para cuidar de si mesma. O que pode, então, ser feito? Sem mais ajuda, não há saída.”

Vilarejo de Ndegue Douma, onde MSF apoia um centro de saúde. Foto: Julien Dewarichet

Sozinhos, não podemos atender todas as necessidades

Quase 2.800 profissionais de MSF atuam na RCA, a maioria contratada localmente. Trata-se de um dos nossos maiores programas nos 75 países em que trabalhamos. A equipe trabalha para apoiar as autoridades de saúde e as comunidades a melhorar o acesso aos cuidados médicos em algumas das áreas mais negligenciadas. Na prefeitura de Mbomou, MSF apoia 15 unidades de saúde, desde pequenos postos de saúde em lugares remotos até o hospital universitário regional de Bangassou – a única instalação de referência especializada que atende uma região do tamanho da Grécia.

Inicialmente lançados como uma resposta de emergência à violência massiva que abalou o país entre 2013 e 2014, os projetos de MSF nessa área agora atendem uma parcela significativa da prefeitura. MSF envia equipes móveis às instalações de saúde locais para fornecer equipamentos essenciais, vacinas e medicamentos que podem ajudar a tratar doenças observadas com frequência entre as crianças na região, como malária, diarreia e infecções respiratórias. Também oferecemos treinamento para profissionais de saúde. Nossas equipes organizam ainda encaminhamentos para pacientes em estado crítico para o hospital de Bangassou, onde apoiamos a maioria dos serviços vitais.

No entanto, as necessidades permanecem amplamente negligenciadas, já que MSF não está – e não pode estar – em todos os lugares. As organizações humanitárias são escassas nessa região, embora a violência tenha diminuído um pouco nos últimos anos. A falta de acesso à água e à eletricidade nas instalações de saúde, além das dificuldades econômicas, exacerba a enorme crise de saúde, que MSF não pode resolver sozinha.

 

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