Qual a relação entre a renda de um país e o câncer cervical?

A médica australiana Tonia Marquardt reflete sobre por que essa doença altamente evitável é um fardo para mulheres em países de baixa renda

Qual a relação entre a renda de um país e o câncer cervical?

A médica Tonia Marquardt é uma médica australiana que trabalha atualmente com Médicos Sem Fronteiras como gerente médica, supervisionando as atividades em cinco países da região da Ásia-Pacífico: Paquistão, Bangladesh, Filipinas, Camboja e Papua-Nova Guiné.

Há um ano, Joyce* entrou na Lilac House, uma clínica de saúde feminina de quatro andares, administrada por Médicos Sem Fronteiras (MSF) em parceria com a organização não governamental local Likhaan, localizada no densamente povoado distrito de Tondo, em Manila, Filipinas. Embora tivesse 40 anos de idade, Joyce nunca havia sido examinada para câncer de colo do útero. De fato, ela não sabia muito sobre a doença. Ela descreveu sua história familiar para mim e para o médico local, acrescentando que ouvira falar dos serviços da clínica por meio de um agente comunitário.

O médico examinou Joyce quanto a alterações cervicais usando VIA (inspeção visual com ácido acético, na sigla em inglês) e, felizmente, seu exame não mostrou nada de anormal. Cerca de 5% das mulheres examinadas na Lilac House têm resultados positivos para anormalidades e então são tratadas ali ou encaminhadas para outro local. Para uma grande parte das pacientes, é uma questão de confirmar que nenhuma alteração foi detectada e um lembrete para verificar novamente em cinco anos.

Mas para as mulheres que chegam tarde demais, ou não chegam, as anormalidades cervicais podem evoluir para câncer avançado, com muito poucas opções de tratamento. Desde setembro de 2016, mais de 9.300 pacientes passaram pelo Lilac House e quase 70% foram examinadas pela primeira vez. Enquanto isso, 21% haviam passado mais de cinco anos sem serem examinadas.

A Austrália está a caminho de eliminar o câncer do colo do útero até 2035, mas a doença ainda representa um fardo sério para muitos países da nossa região – incluindo as Filipinas. Um câncer invasivo e complexo, geralmente causado pelo papilomavírus humano (HPV), também é um dos poucos cânceres que é quase inteiramente evitável, através da vacinação e exame. No entanto, o câncer do colo do útero é uma área em que vemos algumas das maiores discrepâncias do mundo. A vacinação não está disponível de forma igualitária e muitas meninas com maior risco de infecção pelo HPV e desenvolvimento de câncer não estão sendo vacinadas. Existem diferenças crescentes entre a melhor qualidade de atendimento e o que podemos oferecer em ambientes com recursos limitados.

Trabalhando como clínica geral na Austrália, sempre forneci exames de papanicolau de rotina às pacientes. Enquanto algumas lesões pré-cancerígenas foram detectadas, nunca tive uma paciente com câncer de colo de útero em um exame. Por outro lado, enquanto trabalhava com MSF em países de baixa renda, os únicos casos que vi foram na fase já amplamente avançada da doença. A dificuldade é que o câncer do colo do útero é uma doença insidiosa que muitas vezes permanece praticamente invisível até que esteja bastante avançada. A mulher costuma vir até nós como último recurso, mas infelizmente nessa fase o tratamento é muito mais complicado.

Trabalhando em configurações de recursos limitados, muitas vezes você vê coisas sobre as quais não pode fazer nada. Mas com o câncer do colo do útero é particularmente chocante porque é evitável. Realmente não deveríamos mais ver casos graves. A tecnologia existe, temos a possibilidade de evitá-lo e, por isso, devemos nos perguntar: estamos examinando as mulheres cedo o suficiente? Estamos fazendo tudo o que podemos para protegê-las de passar por isso? Tudo se resume ao fato de que as medidas de triagem e prevenção, como as conhecemos na Austrália, estão indisponíveis nos locais onde MSF trabalha.  

Em termos de triagem, o exame de papanicolau é um processo de várias etapas, exigindo um sistema de saúde totalmente funcional. Em um cenário em que o sistema de saúde já está com dificuldades, basta uma abordagem simplificada; as alterações podem ser detectadas durante uma triagem VIA e examinadas no local. Esses métodos simplificados são o que MSF implementou nas Filipinas e em vários outros países – e podem ser facilmente replicados em outros ambientes com poucos recursos, sem exigir grandes investimentos em novas tecnologias. Eles ofereceriam um serviço que muitas mulheres em todo o mundo nunca tiveram a oportunidade de receber.

A vacina, por outro lado, não está amplamente disponível ou acessível em ambientes com poucos recursos; uma cobertura vacinal bem-sucedida requer um investimento de longo prazo de governos com previsão clara. É uma questão de dizer: “se lançarmos a vacina agora, essa população de meninas de 9 anos de idade não terá câncer de colo de útero em 40 ou 50 anos”. Isso costuma ser considerado um grande compromisso e, mesmo quando o compromisso existe, a vacina permanece inacessível para muitos países de baixa renda, principalmente quando há necessidades mais imediatas.

Também devemos lembrar que existe um grande grupo de mulheres que nunca foram vacinadas e elas ainda precisam de serviços de triagem e cuidados, mesmo que a vacina seja implementada agora.  

Seria trágico estar no mundo em 50 anos e ver pessoas ainda morrendo de câncer do colo do útero. E fracassaríamos com nossas gerações futuras se não assumíssemos o compromisso de cuidar melhor delas agora. Temos uma vacina que funciona e opções de triagem e tratamento eficazes, tecnicamente simples e que não esgotam os recursos. Elas devem ser incluídas em um conjunto de cuidados básicos prestados a mulheres e meninas em todo o mundo. Devemos concentrar nossa atenção em uma abordagem multifacetada se realmente quisermos acabar com esta doença altamente evitável.

*O nome foi alterado

 

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