Presidente internacional de MSF faz discurso sobre resposta global ao Ebola no Fórum Global de Parceiros da Fundação Bill & Melinda Gates

Dra. Joanne Liu falou durante sessão plenária “Preparando para a próxima epidemia: lições aprendidas a partir da crise de Ebola”

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A presidente internacional da organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF), Dra. Joanne Liu, discursou durante o Fórum Global de Parceiros deste ano, promovido pela Fundação Bill & Melinda Gates, em Seattle, nos Estados Unidos, sobre a resposta global à epidemia de Ebola na África Ocidental. Abaixo o discurso na íntegra:

“Essa é a primeira vez em que MSF é convidada a falar neste fórum. Obrigada pela oportunidade. Internamente, MSF também está olhando para as lições aprendidas. Ao longo dos últimos 30 anos, MSF tem respondido a vários surtos de Ebola. Nesse mais recente e mais mortal dos surtos, MSF tratou 35% de todos os pacientes de Ebola.

Todos nós temos visto as imagens e ouvido os fatos sobre esse surto de Ebola: 11 mil mortes e 26 mil infectados. Se você pegou Ebola, você teve 50% de chances de sobreviver – mesmo em uma clínica ou hospital. Essa também foi a primeira vez que o Ebola se espalhou de zonas rurais para zonas urbanas.

Para falar a verdade, isso foi difícil para MSF. Até mesmo os nossos médicos e enfermeiros mais experientes ficaram chocados com a forma com que muitos pacientes e colegas estavam morrendo.

Apenas em MSF, 28 dos nossos colegas foram infectados e 14 morreram. O Ebola também matou 2.553 dos nossos pacientes.

Eu vi isso em primeira mão, das clínicas até os corredores do poder. O Ebola ficou fora de controle por causa da falta de liderança, vontade e responsabilidade políticas, não por causa da falta de financiamento, sistemas de alerta precoce, coordenação ou tecnologias médicas.

MSF começou a trabalhar com o Ebola em março 2014 e fez um apelo para que fossem tomadas medidas para conter o “massacre” em junho. Mas nada aconteceu.

Isso nunca teria sido permitido na Europa ou aqui nos Estados Unidos (EUA). Mas Serra Leoa, Libéria e Guiné têm infraestruturas precárias, fronteiras porosas, e não são de grande interesse comercial para o mundo.

O mundo assistiu de braços cruzados enquanto o Ebola destruiu famílias, comunidades e sistemas de saúde.

Desde o início do surto ONGs mantinham programas no país. O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), a Organização Mundial da Saúde (OMS) e pesquisadores internacionais estavam fazendo monitoramento na região. Mesmo os Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês) publicaram sobre o Ebola. Mas naqueles primeiros meses mortais, ninguém soou o alarme e ninguém estava preparado para atender os pacientes diretamente.

Foi apenas quando um diplomata infectado voou para a Nigéria em julho e quando um americano ficou doente em agosto que o mundo acordou e tomou medidas para impedir a chegada do Ebola a seus países.

Mas milhares de pessoas já estavam mortas ou morrendo. Muito pouco, muito tarde.

Então, o que aprendemos?

Lição 1 – Operações:

Acima de tudo, precisamos colocar as necessidades dos pacientes e das comunidades como prioridade de qualquer resposta.

Sabemos por experiência que para cada médico internacional ou especialista enviado, você precisa de 10 profissionais locais para realmente fazer a diferença. Qualquer resposta internacional é apenas a ponta do iceberg.

No distrito de Lofa, na Libéria, uma das áreas onde estávamos trabalhando, foi só quando iniciativas lideradas pela comunidade começaram a limitar a movimentação das pessoas, e quando a Cruz Vermelha passou a enterrar os mortos de forma segura e respeitosa, que o Ebola começou a ser contido.

Operações de emergência significam exatamente isso: uma resposta urgente. Reforçar o monitoramento pode ajudar, mas apenas se os alarmes políticos soarem pedindo ação.

Isso precisa acontecer em questão de dias, não meses.

Em Serra Leoa, Libéria e Guiné, a resposta lenta de governos, doares institucionais, Organização das Nações Unidas (ONU) e OMS causou incalculáveis mortes e sofrimento.

Lição 2 – Governança e responsabilidade:

Uma resposta rápida não acontecerá sem liderança. E a OMS é e deve permanecer sendo a líder no quesito saúde global. Mas, hoje, falta à organização capacidade e expertise para responder a epidemias – seja Ebola na África Ocidental ou cólera em Angola e no Haiti.

Igualmente importante é a forma de estabelecer prioridades. Temos de enfrentar questões difíceis acerca de como Estados-membros e grandes doadores, como a Fundação Bill & Melinda Gates, viabilizam suas doações, e definir as prioridades da OMS. Isso nem sempre é baseado nas necessidades encontradas em campo.

Lição 3 – Pesquisa e Desenvolvimento (P&D):

O Ebola é outro exemplo do fracasso do sistema de P&D para desenvolver medicamentos e modelos de diagnóstico muito necessários para doenças negligenciadas.

Milhares de amostras de tecidos, sangue e sêmen humanos foram colhidas de pacientes e de cadáveres e enviados à África do Sul, aos EUA e ao redor do mundo.

Como essas amostras estão sendo usadas? Quem está sendo beneficiado?

P&D não deveria ser algo limitado a encontrar um medicamento milagroso para nos protegermos do vírus nos EUA ou na Europa. Como isso irá ajudar famílias nos países afetados?

Nós precisamos de uma mudança fundamental no sistema de P&D. Os resultados de P&D deveriam ser um bem público global, adaptado às necessidades dos pacientes, profissionais de saúde e governos, e disponíveis e acessíveis.

Então, para concluir:     

O Ebola é um fracasso político, e não de recursos.

A realidade é que, apesar de promessas de reformas na OMS, do desembolso mais rápido do Banco Mundial e do interesse do setor privado em Pesquisa e Desenvolvimento, se outro surto de Ebola acontecesse hoje, provavelmente, nossa resposta não seria muito melhor.

Não se trata de modelos de preparo e resposta a crises, ou de investimentos massivos e sistemas paralelos.

Trata-se de colocar as necessidades de pacientes, comunidades e profissionais de saúde do país em primeiro lugar.

O setor privado, incluindo a Fundação Bill & Melinda Gates e companhias farmacêuticas, desempenham um papel fundamental em P&D.

Em última análise, o Ebola deve permanecer uma responsabilidade pública. Prioridades de saúde global e de respostas a emergências não podem ser decididas em Seattle.

No fim, são os governos, e não fundações privadas, os responsáveis por seus cidadãos. Os governos, a Organização Mundial da Saúde e as Nações Unidas precisam liderar, soar o alarme, agir e serem responsabilizados.

Só assim vidas serão salvas.

Obrigada.”

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