Em crises humanitárias, pessoas que vivem com HIV enfrentam graves consequências

Em Moçambique, pacientes relatam dificuldades para seguir com o tratamento por causa dos conflitos armados.

Maria recebe tratamento para HIV na clínica de MSF. © Martim Gray Pereira/MSF

Os sistemas de saúde lutam para se adaptar durante as crises humanitárias. Em catástrofes naturais ou conflitos violentos, as estruturas são danificadas, a cadeia de abastecimento de medicamentos é prejudicada, e o pessoal médico é forçado a fugir, assim como o restante da população. O resultado é um sistema de saúde desestruturado, sem condições de atender de forma adequada pacientes com necessidades crônicas, o que afeta de maneira bastante grave as pessoas que vivem com HIV. A maioria delas precisa tomar os medicamentos diariamente, e interromper esse tratamento pode torná-las mais vulneráveis a infecções oportunistas que podem levar à morte.

Em Cabo Delgado, província no nordeste de Moçambique, onde conflitos entre grupos armados e forças governamentais persistem desde 2017, o acesso à saúde se tornou bastante limitado. Toda a população sente os impactos desses confrontos, incluindo as milhares de pessoas que vivem com HIV e encontram dificuldade para obter os cuidados de saúde essenciais e os medicamentos que necessitam tomar regularmente. Cerca de 12% da população do país vive com HIV.

A seguir, compartilhamos os relatos de quatro pessoas atendidas no projeto de MSF para pessoas que vivem com HIV em Macomia, Moçambique:

Se ela não tivesse interrompido o tratamento, ainda poderíamos estar juntos.”

– Constâncio Paulo, paciente de MSF em projeto para pessoas que vivem com HIV em Moçambique, sobre a esposa.

Constâncio Paulo © Martim Gray Pereira/MSF
Constâncio Paulo © Martim Gray Pereira/MSF

“Minha esposa, Sofia, morreu em junho de 2022. Nós morávamos no vilarejo de Nkóe. Ela vivia com HIV, mas só descobri dois meses antes de seu falecimento. Em abril daquele ano, Sofia estava muito doente. Caminhei por seis horas para pegar remédios contra malária para ela, mas quando cheguei em casa, meu cunhado me disse que minha esposa não tinha malária. Ela vivia com HIV e costumava tomar medicamentos antivirais antes de nos casarmos, mas interrompeu o tratamento em razão do medo do preconceito e de que eu me divorciasse dela se descobrisse. Fomos correndo para a clínica de MSF em Macomia, onde nos explicaram que ela estava muito doente porque havia parado de tomar a medicação por um longo período.

Queríamos voltar para Nkóe, mas havia grupos armados por perto e estávamos com medo. Ficamos por algumas semanas no campo, em um pequeno abrigo que construí. Eu queria que ela se recuperasse e me certificava de que Sofia tomasse sua medicação todos os dias. Mas, em junho, seu estado de saúde piorou. Ainda estávamos morando no campo e muito longe de Macomia para voltar à clínica, então corremos o risco de voltar para Nkóe. Porém, uma semana após nosso retorno, homens armados atacaram nosso vilarejo.

Naquele dia, levantei bem cedo para plantar milho. Voltei para casa por volta das oito horas da manhã e me sentei ao lado de Sofia para lhe fazer companhia. Ela estava muito fraca e mal conseguia falar. De repente, ouvi tiros e vimos casas em chamas. Corri para a mata em busca de segurança, para sobreviver. Eu fiquei com o coração cortado, pois não consegui carregar Sofia comigo quando o ataque começou, devido à sua condição de saúde.

Após o fim do tiroteio, voltei para casa, embora com pouca esperança. Meu medo se confirmou, Sofia havia morrido. Eu não conseguia pensar em nada e tinha medo de que os grupos armados voltassem. Liguei para alguns familiares para contar o que tinha acontecido, para enterrá-la e dar um último adeus. Éramos 15 pessoas. Tudo teve que ser muito rápido, pois tivemos que fugir novamente. Caminhamos por cinco horas até Macomia.

Lá, comecei a me sentir mal, com dores de estômago e tosse. Fui à clínica de MSF em dezembro de 2022, onde testei positivo para HIV. Assim que recebi o diagnóstico, sabia que tinha que começar o tratamento para evitar passar pelo mesmo sofrimento que Sofia. Tenho de voltar à clínica todos os meses para acompanhamento e para pegar minha medicação.

Estou me sentindo bem e levando uma vida normal. Mas estou muito triste, porque Sofia acabou perdendo a vida e eu contraí o HIV. Se ela não tivesse interrompido o tratamento, poderíamos estar juntos ainda.

O mais importante para as pessoas que vivem com HIV é ter acesso aos serviços de saúde e tomar a medicação. Mas quase todos os postos de saúde foram destruídos pelos combates.

Leia também: “O HIV pode estar em meu sangue, mas a luta contra ele está em minha alma”

 Como eu não queria ter o mesmo destino, comecei a tomar a medicação.”

– Fina*, paciente de MSF em projeto para pessoas que vivem com HIV em Moçambique, sobre o marido.

Fina (de costas) e seu filho, Bernardo*, durante consulta mensal para acompanhamento. © Martim Gray Pereira/MSF

“Em 2020, tive de fugir da minha cidade natal em Muidumbe por causa da violência. Meu marido estava muito doente. Ele tinha fortes dores de cabeça e no corpo, então o levamos ao hospital. Ele testou positivo para HIV e já estava em estado crítico, mas recusou o resultado e não quis tomar a medicação.

Ele temia que eu me divorciasse dele por ser uma pessoa que vivia com HIV. Era tarde demais. Ele faleceu pouco tempo depois, e eu também testei positivo para o HIV. Como eu não queria ter o mesmo destino, comecei a tomar a medicação. Estou me sentindo bem e não há nada de errado com esse tratamento. Não quero ver o HIV progredindo.

Logo após a morte do meu marido, fui para Macomia para me juntar à minha mãe, onde ela estava vivendo após ser deslocada em 2020. Em novembro de 2022, fiquei grávida. Meu filho, Bernardo, nasceu em agosto de 2023, e desde então, também toma os remédios contra o HIV. Nós dois vamos à clínica de MSF todo mês para pegar nossos medicamentos. Às vezes meu corpo dói, mas a medicação está ajudando muito.

Atualmente, estou cursando a 8ª série. Infelizmente, quando fui embora há três anos, parei de estudar e fiquei alguns anos atrasada. Quero continuar meus estudos e me tornar uma policial. Acredito que esse seja um trabalho muito importante. Quero que esse conflito termine e, um dia, gostaria de voltar para casa em Muidumbe.”

Saímos com pressa, apenas com as roupas que estávamos usando no corpo. Não consegui trazer meu medicamento comigo. Eu estava muito assustada, pois ouvia tiros nas proximidades.”

– Maria*, paciente de MSF em projeto para pessoas que vivem com HIV em Moçambique, sobre sua fuga durante um ataque armado em seu vilarejo.

Maria foi deslocada em 2020 quando Macomia foi atacada e retornou em 2022. Desde então, ela faz tratamento antirretroviral na clínica de MSF em Nanga. © Martim Gray Pereira/MSF

“Descobri que estava vivendo com o HIV em 2019, quando estava grávida da minha quarta e última filha, Yolanda. Fiquei com muito medo de que ela também contraísse o HIV. Fiquei aliviada porque descobrimos a tempo de evitar a transmissão do vírus para ela. Atualmente, ela tem 4 anos de idade, é saudável e está muito bem.

Em maio de 2020, tivemos que sair de Macomia quando a cidade foi atacada. Eu fugi com minha filha Yolanda, e meu marido e outros três filhos fugiram em direções diferentes. Ficamos separados uns dos outros. Yolanda e eu ficamos escondidas na mata por três dias. Bebemos água do rio e recebemos comida de algumas pessoas que encontramos no caminho.

Saímos com pressa e sem nada, apenas com as roupas do corpo. Também não consegui trazer meu medicamento comigo. Eu estava muito assustada, pois ouvia tiros nas proximidades. Mas depois de três dias escondida, pude voltar para nossa casa em Macomia para procurar minha família e pegar alguns pertences, como roupas, alimentos e o meus medicamentos. Após isso, nossa família fugiu para o distrito de Chiure.

Quando chegamos a Chiure, eu só tinha medicação para uma semana. Felizmente, conheci uma pessoa que tinha HIV e ela me ajudou a ter acesso ao hospital para obter novos medicamentos. Durante os dois anos em que fiquei deslocada em Chiure, sempre tive acesso a medicamentos e exames regulares. Mas em junho de 2022, o distrito também foi atacado.

Algumas pessoas estavam retornando para Macomia, e decidimos nos juntar a elas. Mas ainda temos medo da violência. Estamos cultivando apenas em pequenos terrenos perto do centro de Macomia. Não nos atrevemos a ir para lugares mais distantes, onde os terrenos são maiores e o solo é mais fértil. É muito perigoso. Em maio deste ano, meu marido, que era pescador, saiu para trabalhar e foi assassinado durante um ataque de grupos armados.

Quando chegamos aqui, eu tinha medicação para apenas dois dias. Felizmente, encontrei um promotor de saúde de MSF, Domingos, e contei a ele que tinha ficado sem os remédios para HIV. Ele me disse para ir à clínica de MSF em Nanga. Desde junho de 2022, tenho ido a essa clínica para pegar meus medicamentos. Costumo ir uma vez por mês, e os serviços são muito bons – a equipe é muito simpática e nos faz sentir confortáveis e acolhidos. Levo minha medicação muito a sério: um comprimido todas as manhãs. Estou me sentindo bem e forte, e trabalho quase todos os dias em meus campos.”

Por causa dos conflitos, é difícil ter um emprego e renda. É muito difícil pagar o transporte para ir a uma das poucas clínicas onde podemos pegar nossos medicamentos e fazer consultas médicas.”

– Fahamo*, paciente de MSF em projeto para pessoas que vivem com HIV em Moçambique.

Fahamo foi diagnosticado com HIV em setembro de 2023 na clínica de MSF em Nanga. Desde então, ele retorna todos os meses para receber tratamento e monitorar sua saúde. © Martim Gray Pereira/MSF

“Descobri meu diagnóstico de HIV em setembro de 2023, na clínica de MSF em Nanga. Fui à clínica porque tive uma infecção de pele, minha perna estava inchada e estava com dor. Eu tinha ido a curandeiros tradicionais várias vezes, mas nada me fazia sentir melhor e minha condição só piorava.

Em 2019, fui deslocado duas vezes devido à violência: a primeira vez de Bilibiza, onde estava estudando auditoria agrícola, e a segunda vez de Quiterajo, onde estava morando com minha família. Em 2020, fui para Metuge, onde fiz um estágio de dois meses, mas tive que interrompê-lo porque comecei a me sentir doente. Retornei a Macomia em julho de 2020, logo após os ataques. Os centros de saúde haviam sido destruídos e não estavam funcionando: por isso, procurei os curandeiros tradicionais.

Em setembro de 2023, minha condição estava ficando muito ruim. Minha perna estava tão inchada que eu não conseguia nem vestir minhas calças. Fui à clínica de MSF em Nanga, onde fiz o teste e descobri que estava com HIV. Como minha condição era muito ruim, tive de ser encaminhado para o hospital em Pemba, a capital da província, onde fiquei por duas semanas. Desde então, minha saúde melhorou e estou bem.

Estou tomando a medicação para o HIV e posso levar uma vida comum, apesar do vírus. Entretanto, por causa dos conflitos, é difícil ter um emprego e renda. É muito difícil pagar o transporte para ir a uma das poucas clínicas onde podemos pegar nossos medicamentos e fazer consultas médicas.

No futuro, eu gostaria de me casar e ter três filhos. É fundamental continuar tomando a medicação e seguir todas as medidas necessárias para evitar a transmissão do HIV para minha futura parceira e filhos.”

 

*Os nomes foram alterados para proteção.

Compartilhar
Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on print