Câncer de colo do útero é um assassino silencioso de mulheres no Malauí

Mais de 2.300 morrem todos os anos, apesar da doença ser facilmente evitável

Câncer de colo do útero é um assassino silencioso de mulheres no Malauí

O câncer de colo do útero mata, todos os anos, mais de 2.300 mulheres no Malauí, apesar de ser uma doença facilmente evitável. Essa realidade é resultado da falta de vacinação e oferta insuficiente de tratamento. Desde 2018, Médicos Sem Fronteiras (MSF) trabalha para preencher essa lacuna no distrito de Blantyre, onde a doença é tristemente comum.

Um diagnóstico de câncer é um evento que transforma a vida de qualquer pessoa. No caso de Ennerti Williams, 51 anos, o câncer de colo do útero afetou não apenas sua saúde, mas também sua capacidade produtiva e sua vida familiar de uma forma que ela nunca poderia imaginar.

“Por causa da doença, tive que parar de trabalhar, pois estava com muita dor”, sussurra, sua voz quase inaudível por causa do barulho do pátio no Hospital Central Queen Elizabeth, em Blantyre, no sul do país. “Sem emprego, perdi toda a minha renda e meu marido me deixou. Ele não viu sentido em ficar com alguém que provavelmente iria morrer em breve”.

Antes de adoecer, Ennerti havia vivido toda a sua vida em Lilongwe, capital deste pequeno país, localizado entre vizinhos maiores no sul da África. Ela administrava o que as pessoas locais chamam de “empresa de pequena escala”. No caso dela, vendendo carvão e créditos para telefone.

Em 2018, Ennerti se tornou uma das mais de 3.600 mulheres do Malauí que adoecem todos os anos de câncer de colo do útero, o tipo mais comum de câncer entre a população feminina do país. Dois terços das doentes morrem anualmente. É um número elevado de mortes para uma doença que pode ser facilmente evitada por meio da vacinação contra o vírus do papiloma humano (HPV). Uma combinação de quatro fatores potencializa o número de casos: a vacina não está amplamente disponível no Malauí; muitas mulheres recebem o diagnóstico tarde; o acesso ao tratamento é limitado; e com muita frequência as mulheres não podem pagar cuidados de qualidade. A alta prevalência de HIV entre a população só piora as coisas. Em mulheres vivendo com HIV, o risco de desenvolver câncer de colo do útero é de 6 a 8 vezes maior em comparação com outras mulheres.

Ennerti inicialmente tentou encontrar tratamento eficaz em Lilongwe, mas não conseguiu. “O medicamento que me foi administrado não parecia funcionar, e a dor e a coceira não paravam”, diz ela.

Por estar desempregada e afastada do marido, ela mudou para Blantyre, depois que soube que MSF estava executando um programa gratuito de câncer de colo do útero com as autoridades nacionais de saúde no Hospital Central Queen Elizabeth. “Um grupo religioso me ajudou a pagar a viagem de Lilongwe até Blantyre, onde encontrei acomodação com outros membros da minha família”, afirma Ennerti. “Comecei os ciclos de quimioterapia e recebi remédios para acabar com a dor e o sangramento”.

O programa de MSF para câncer de colo do útero está em funcionamento desde o início de 2018, oferecendo inicialmente triagem, consultas e tratamento ambulatorial para lesões pré-cancerosas e cancerígenas. Desde então, as atividades foram ampliadas para incluir promoção da saúde em nível comunitário, apoio à vacinação contra a infecção pelo HPV, cirurgias e cuidados paliativos para pacientes com câncer em estágio avançado.

O acesso a cirurgias gratuitas salvou vidas, como a de Madalo Gwaza, uma comerciante de 56 anos de Monkey Bay, um vilarejo no lago Malauí, que ela descreve como sendo “um lugar bonito, onde as pessoas vêm pescar e nadar”. O negócio de pequena escala de Madalo consistia em comprar peixe de pescadores locais e vendê-los no mercado.

A vida de Madalo mudou drasticamente no final de 2018, quando começou a sentir dor, sangramento e corrimento vaginal. “Meus sintomas continuaram piorando e tive que parar de trabalhar”, conta ela em seu leito na enfermaria supervisionada por MSF. “Fui diagnosticada com câncer e tive que fazer viagens regulares a Blantyre para a quimioterapia. Rapidamente fiquei sem dinheiro. Meu filho mais velho me ajudou com suas próprias economias, mas eu também tive que pegar 25.000 kwacha [180 reais] emprestados e ainda não sei se poderei pagar”.

O custo do tratamento do câncer de colo do útero é muitas vezes proibitivo para as mulheres no Malauí, pois muitas perdem suas fontes de renda devido à dor física e à mobilidade reduzida.

Malita Kulawale, que estava a alguns leitos de Madalo, teve uma operação bem-sucedida no início de março e agora está curada, mas enfrentou muitos dos mesmos problemas que a companheira de hospital. “Eu costumava ser agricultora, mas a doença me impossibilitava de trabalhar nos campos. Eu tinha que fazer uma biópsia, mas custava 25.000 kwacha e eu não tinha dinheiro. Meu irmão, que tem alguns animais, teve que vender um porco para me ajudar, enquanto meu marido assumiu alguns trabalhos agrícolas”.

Malita foi diagnosticada com câncer de colo do útero em abril de 2019 e passou por ciclos de quimioterapia pelo resto do ano. Quando MSF abriu uma sala de cirurgias, ela teve a chance de fazer o procedimento. “Me disseram que seria uma operação pesada: uma remoção completa do meu útero. Mas eu já tinha seis filhos e sabia que, finalmente, a operação representaria uma solução, não apenas melhorar a dor, mas a possibilidade de uma cura real”. Ela está ansiosa para recuperar suas forças para o dia em que poderá começar a cultivar novamente.

Apesar de todas as dificuldades que enfrentaram, Malita e Madalo se consideram sortudas por estarem entre as poucas mulheres que conseguiram encontrar tratamento eficaz e serem curadas com sucesso do câncer de colo do útero. Muitas mulheres não são rastreadas e diagnosticadas até que seja tarde demais, quando um tratamento curativo já não é mais uma opção.

“Quando as pacientes apresentam câncer em estágio avançado, tudo o que podemos fazer é oferecer cuidados paliativos para cuidar das dores físicas e sangramentos”, avalia Jeroen Beijnsberger, que lidera o programa onco-ginecológico de MSF em Blantyre. “Pode não ser uma cura, mas é uma maneira de proporcionar a elas a melhor qualidade de vida possível”.

Para muitas pacientes, e para as que estão no estágio final da doença em especial, o sangramento e o cheiro causado pelo corrimento vaginal aumentam o sofrimento, pois geram um estigma e a exclusão social. A experiência de Ennerti, que foi abandonada pelo marido depois de adoecer, está longe de ser incomum. As mulheres com a doença são muitas vezes percebidas como incapazes de desempenhar suas funções como esposas e gestoras da família, o que pode levar a problemas também na comunidade, sendo preciso apoio psicológico. “Devido à combinação de doença incurável mais as questões sociais e familiares decorrentes, o apoio psicossocial é um componente fundamental nos cuidados paliativos”, diz Beijnsberger.

Sofrendo de câncer de colo do útero em estágio avançado, Margaret Mafupa está tão fraca que precisa de ajuda para se sentar no chão da casa da filha em Ndirande, uma pequena cidade no distrito de Blantyre. Ela é visitada na maioria das semanas por enfermeiros e assistentes sociais de MSF, que verificam sua condição e lhe fornecem medicamentos.

“Ainda consigo andar um pouco, mas muito devagar e com alguma ajuda”, comenta Margaret. “Felizmente minha mãe e uma de minhas filhas estão aqui, enquanto minha outra filha me envia algum dinheiro da África do Sul, onde mora”. Quando perguntada sobre o marido, ela permanece em silêncio por alguns segundos antes de dizer baixinho que prefere não falar sobre isso.

Antes de adoecer, Margaret ganhava uma boa renda com seu trabalho. “Eu costumava fazer viagens para a África do Sul. Levava arroz, peixe e feijão para vender por lá e voltava com cobertores, cortinas e, às vezes, TVs para vender aqui no Malauí. Era um bom negócio, que permitiu que eu mandasse minhas duas filhas para a escola – uma delas até cursou o ensino superior”. Tudo isso mudou quando ela ficou doente e começou a sentir dor, sangramento e ter a mobilidade reduzida. Os sintomas de piora a convenceram a fazer o rastreio da doença em 2019, apesar de ter recebido um resultado negativo apenas dois anos antes. “Desta vez, eles me disseram que eu tinha câncer”, informou.

Não há uma maneira fácil de dizer a verdade a alguém que está morrendo em qualquer lugar ou cultura, mas dizer às mulheres que elas têm câncer de colo do útero terminal é particularmente desafiador para as equipes de MSF em Blantyre. “Perguntamos o quanto elas querem saber sobre sua condição e algumas dizem: ‘Eu sei que tenho câncer, não quero saber mais nada’. No final do dia, porém, você deve encontrar uma maneira de contar. Elas precisam estar cientes. Mas você deve dar tempo a elas”, explica Christopher Chalunda, um dos enfermeiros de MSF.

Margaret ainda espera se recuperar, apesar do estágio avançado da doença. A esperança sobrevive contra todas as probabilidades e, às vezes, milagres acontecem. Elida Howa sorri enquanto se senta debaixo de uma árvore do lado de fora de sua casa em Chileka, uma área rural próxima de Blantyre, enquanto  se lembra de sua história extraordinária.

A história de Elida começa como muitas outras: quando a dor e o sangramento a forçaram a desistir de seu trabalho nos campos, ela foi fazer uma consulta. “Fui hospitalizada na ala de oncologia do hospital Queen Elizabeth. Eu me sentia fraca, doente, vi mulheres morrendo em suas camas perto de mim. Minha condição era tão ruim que até minha mãe me disse que eu estava perdendo tempo”.

Quando a condição de Elida foi considerada incurável, ela passou a receber cuidados paliativos de MSF em casa. Após quatro meses de quimioterapia paliativa, seu estado melhorou além de todas as expectativas e, após uma nova avaliação, recebeu uma cirurgia curativa. Hoje, está livre de câncer e ansiosa para recuperar sua antiga vida. “Eu tinha medo da operação, temia não sair dela viva. Mas estou feliz por ter feito e me sinto bem agora, apenas esperando ser forte o suficiente para voltar à agricultura.”

Alguns dias após o nosso primeiro encontro, Madalo Gwaza passou por uma cirurgia e está se recuperando. Depois de receber alta do hospital, voltou para casa em Monkey Bay, no lago Malauí. Seu plano é pedir emprestado mais dinheiro para começar a negociar peixes novamente.

Mas Ennerti Williams ainda está esperando: ela precisa de radioterapia, que ainda não está disponível no Malauí. O próximo passo no programa de MSF é tornar a radioterapia acessível, facilitando transferências para países vizinhos como Zâmbia, onde existem instalações apropriadas.

Mas a chegada da pandemia de COVID-19 no Malauí também está afetando o sistema de saúde como um todo, assim como as atividades de MSF. Foram suspensos não apenas os planos de radioterapia em outros países para pacientes como Ennerti, mas também as visitas domiciliares para doentes em cuidados paliativos, por causa da necessidade de minimizar o risco de transmissão. As cirurgias, por sua vez, foram limitadas apenas a casos urgentes.

“Eles me disseram que estou em uma lista de espera para radioterapia e irei assim que for possível”, diz Ennerti. “Aguardo, esperançosa. Sou otimista.”

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