“As casas se transformaram em um lugar de medo, um lugar que mata”

Mais de dois meses após os terremotos na Turquia e na Síria, compartilhamos sete relatos de pessoas que ainda vivem o impacto do desastre.

Foto: Mariana Abdalla/MSF

Em fevereiro, fortes tremores atingiram o sul da Turquia e o noroeste da Síria.

Na Turquia, os terremotos afetaram diretamente mais de 9 milhões de pessoas em onze províncias do sul, onde viviam 16% da população do país. Mais de 50.300 pessoas morreram, mais de 3 milhões foram deslocadas e mais de 2 milhões têm vivido em assentamentos formais e informais nas áreas afetadas pelos terremotos, de acordo com dados da Organização das Nações Unidas (ONU).

Agora, mais de dois meses após os primeiros tremores, as pessoas estão tendo que lidar com o estresse pós-traumático causado por esses eventos. Os tremores secundários ainda ocorrem todos os dias. Segundo a Presidência Turca de Gestão de Desastres e Emergências (AFAD, na sigla em inglês), mais de 25 mill tremores secundários ocorreram desde os terremotos de 6 de fevereiro – 47 deles superiores à magnitude 5 na escala Richter. Além disso, fortes chuvas causaram inundações em algumas áreas.

Médicos Sem Fronteiras (MSF) está apoiando organizações locais sem fins lucrativos na Turquia, na realização de atividades psicossociais nas áreas afetadas, incluindo as províncias de Adıyaman, Hatay, Kahramanmaraş e Malatya.

Aqui, as pessoas dessas regiões compartilham suas histórias e sentimentos, e uma psicóloga de uma organização apoiada por MSF destaca as crescentes necessidades de saúde mental e o impacto psicológico do desastre.

“Ainda não conseguimos pensar com clareza”

Abdurrahman Can é o líder do vilarejo de Başpınar (Küllüm), em Adıyaman.
Foto: Mariana Abdalla/MSF

“Perdi minha nora e meu neto. Eu mantive o corpo do meu neto no carro por dois dias até que pudéssemos finalmente encontrar o corpo de sua mãe e enterrar os dois. Nós nem sequer tínhamos um material próprio para cobri-los. Nós os embrulhamos com um cobertor. Havia muitas pessoas mortas nos hospitais.

Tenho quatro filhos: duas mulheres e dois homens. Um deles perdeu a esposa e o filho. Outro conseguiu tirar seu filho vivo dos escombros. As casas de todos eles se foram, não sobrou nada. Eles não conseguiram tirar nada.

Pagamos um preço, perdemos vidas, perdemos muitas propriedades.

Nos primeiros dias, dormimos em nossos carros. Agora ficamos em tendas; não podemos entrar [em casa].

Há muito medo. Há tremores secundários durante o dia, todos os dias. Ainda não conseguimos pensar com clareza. Não temos mais um padrão de sono. Estamos começando a ter problemas familiares.

Precisamos de apoio material e moral. Todos estão estressados, mas estamos tentando nos recuperar. Estamos aqui como uma família, tentando manter a vida. Agora, pelo menos, sabemos que alguém está nos ouvindo.”

“Levará muito tempo para reparar isso”

Nazlı Sinem Koytak é psicóloga da İmece İnisiyatifi, uma ONG local apoiada por MSF em Adıyaman.
Foto: Mariana Abdalla/MSF

“Normalmente, depois que um evento que ameaça a vida passa, as pessoas são confortadas e esperamos que o medo diminua com o passar do tempo.

Infelizmente, porém, uma vez que os tremores secundários continuam a acontecer, estamos vendo que os temores das pessoas estão muito vivos e não diminuem. Elas estão física e mentalmente cansadas.

A maioria das pessoas com as quais conversamos compartilhou que está com muito medo de entrar em suas casas. Elas não se sentem seguras lá dentro. Mesmo que precisem entrar durante o dia, tentam sair o mais rápido possível e passar a noite em tendas. Isso acontece até mesmo com as pessoas que tiveram suas casas ligeiramente danificadas.

Em um dos vilarejos, os moradores disseram que suas casas ‘agora se transformaram em monstros’. As pessoas costumavam se refugiar em seus lares, mas agora as casas se transformaram em um lugar de medo, um lugar que as mata.

Levará muito tempo para reparar isso.

Portanto, em nosso trabalho, priorizamos uma série de atividades que restauram a confiança das pessoas na família, especialmente entre pais, crianças e adolescentes.”

“Terremotos de um lado, e chuva do outro”

Semra Karaca, Sultan Kodaş, Hüseyin Kodaş e Şengül Kodaş (da esquerda para a direita) vivem juntos em família no vilarejo de Ören, nos arredores de Malatya.
Foto: Mariana Abdalla/MSF

“Terremotos de um lado, e chuva do outro. Não sei o que vai acontecer no futuro. Estou aqui com minha esposa, meus irmãos, meus filhos e minha mãe.

Nossos pertences estão submersos na água por causa da inundação. Não conseguimos encontrar nada para vestir, o vizinho nos trouxe essas roupas por enquanto. Estávamos vivendo em uma tenda, mas o local também foi inundado.

Agora estamos tentando secar o que tiramos da casa, incluindo nossas fotos de família.

As crianças estão assustadas. A situação é muito terrível.”

“Eu me sinto sem esperança com este vilarejo”

Yusuf Eren Ozkan, 22 anos, é estudante na Universidade de Düzce. Ele quer ser um chef de cozinha. Durante a primeira semana de fevereiro de 2023, Yusuf havia voltado para seu vilarejo, Polat, na província de Malatya, em um recesso da universidade.
Foto: Mariana Abdalla/MSF

“Eu vim visitar meus pais quando tive um recesso na universidade. Na noite dos primeiros terremotos, eu estava jogando videogame no meu quarto. No começo, pensei que ia parar de tremer depois de alguns segundos, mas então eu percebi que isso [o tremor] seria maior.

Após o primeiro terremoto, eu e minha família ainda ficamos em nossa casa. Ligamos a TV e tentamos descobrir o que aconteceu através das notícias. Foi quando o segundo terremoto aconteceu, e as coisas ficaram um pouco mais difíceis para nós.

Saímos e estava muito frio, havia muita neve no chão e caindo do céu. Então, uma pedra caiu e bateu em mim e em meu pai. Ficamos feridos. Acabamos montando uma tenda sozinhos para proteção.

Agora, eu e minha família estamos trabalhando em um restaurante comunitário, fazendo e servindo comida para cerca de 4 mil pessoas. Estou aqui para ajudar, eu amo Polat, mas eu me sinto sem esperança com este vilarejo agora. Tenho muitos sonhos e quero morar em outro lugar. Eu quero seguir meu sonho de me tornar um chef.”

“O que vai acontecer conosco?”

Beyce Özdemir é de Malatya e está dormindo em um centro comunitário no vilarejo de Arguvan, nos arredores da cidade de Malatya.
Foto: Mariana Abdalla/MSF

“Minha casa foi inundada no dia dos primeiros terremotos. Todos os canos estouraram. Às vezes, voltamos e tentamos recuperar pequenas coisas, mas perdemos quase tudo. Estou dormindo neste centro comunitário com meu marido.

Se não fosse por este lugar, ninguém nos acolheria. Estaríamos congelando.

Meus filhos estão longe, cada um em uma cidade diferente, tentando sobreviver. A vida é difícil, cada um tem seus próprios problemas.
Para ser honesta, mal dormimos. Nossa vida é caótica. O que vai acontecer conosco?

Meu marido tem 65 anos e tem pressão alta, diabetes, doenças cardíacas… tudo. O que podemos fazer?”

“Não consigo dormir bem hoje em dia”

Eylül, 13 anos, vive no vilarejo de Kayatepe (Rezip), em Adıyaman.
Foto: Mariana Abdalla/MSF

“Na noite dos terremotos, havia sons de edifícios desmoronando, e eu podia ver luzes no céu.

Ouvi pessoas gritando ‘me salvem!’. As condições climáticas também eram difíceis naquela época, estava um clima de neve e chuvoso.

Não consigo dormir bem hoje em dia. Eu não posso estudar. Parece que todas as informações que eu tinha na mente já se foram. Tudo o que eu costumava saber antes, eu não sei mais.”

“Nada fica na minha cabeça”

Emine, de 11 anos, irmã de Eylül, sente o impacto do afastamento das pessoas que costumava ter por perto.
Foto: Mariana Abdalla/MSF

“Eu tinha amigos, mas todos foram embora por causa do terremoto. Sinto muita falta deles. Não tem mais ninguém aqui. Fico em casa assistindo TV.

Antes do terremoto, eu costumava ir à escola, depois voltava para casa, lia meu livro e brincava com meus amigos. Agora não há amigos, e eu não consigo me concentrar ao ler meu livro, nada fica na minha cabeça por causa do estresse.”

Na Turquia, MSF está apoiando organizações locais que trabalham nas áreas afetadas com distribuição de água, alimentos e itens essenciais, além de melhorias nas condições de água e saneamento e no apoio psicossocial. As equipes de MSF estão constantemente avaliando e adaptando nossa assistência para melhor responder às necessidades médicas e de assistência. Até agora, nossas atividades de apoio ocorreram em regiões como Gaziantep, Malatya, Adıyaman, Hatay, Kilis, Kahramanmaraş. Na Síria, MSF reforçou a capacidade de resposta de emergência das equipes locais e doou medicamentos e suprimentos médicos essenciais para equipes de resgate e instalações médicas. Atualmente, MSF ampliou as atividades no noroeste do país, com clínicas móveis e apoio de saúde mental.

Compartilhar
Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on print