Saúde indígena na fronteira entre Brasil e Venezuela

Foto: Arquivo pessoal

Carla Rodrigues, médica de MSF, compartilha os desafios que enfrentou ao atuar com populações indígenas no Norte do país.

Um caso que me tocou muito ocorreu quando eu estava em atendimento numa comunidade indígena na fronteira com a Venezuela. A previsão inicial era de que iríamos ficar apenas 3 dias ali. Mas no segundo dia, integrantes de outra comunidade que vive além da fronteira chegaram, cerca de 40 pessoas que andaram por cerca de 4 horas a pé para estar ali.

Atendi uma senhora indígena que chegou com glicose capilar (açúcar no sangue) de 586, uma taxa extremamente alta. Ela falava espanhol e também seu dialeto indígena. Eu tentava entender se ela já havia recebido o diagnóstico para o diabetes. A comunicação era complexa, porque meu “portunhol”, somado ao cansaço e ao calor extremo, dificultavam ainda mais nossa interação. Eu precisava respirar pausadamente, mandar palavras em espanhol para o meu cérebro, ter mais atenção ao que ela falava, mas eu tinha dificuldade de entender. Ela me disse que sabia sobre o seu diagnóstico de diabetes e que usava o remédio metformina, mas que estava sem acesso à medicação havia muitos meses. “Quando eu tomava os 4 comprimidos por dia, desmaiava pois não tinha comida”, ela recorda. Provavelmente acontecia hipoglicemia – quando o açúcar do sangue abaixa de forma extrema, e o corpo tenta enviar hormônios para liberar e produzir açúcar estocado no fígado. Caso o nível de açúcar no sangue continue baixo, o cérebro, sem energia, responde com confusão mental e desmaios, em casos mais graves.

O calor do ambiente se transformou em “gelo” dentro do meu coração. Várias indagações vinham à minha mente: “Como um ser humano pode não ter acesso à comida e não ter direito à saúde?”, “Como podemos ter os mais modernos tratamentos para diabetes em países e estados ricos, e aqui, não haver o mínimo, sequer alimento?”, “Como vou atender da melhor maneira a paciente considerando a sua condição de vida?”, “Se ela não tratar o diabetes, vai ter várias complicações de saúde evitáveis… evitáveis”, entre outras.

Enquanto minha mente gritava, ouvia ela dizer que não conseguia atendimento médico pelo lado da Venezuela, e do lado do Brasil, também não, pois não tem CPF e não está no censo populacional. Assim, está sem atendimento há muito tempo. Ela também não tem acesso às farmácias, pois ficam longe de sua comunidade, não tem dinheiro para o transporte e caminhar até lá é inviável. Está passando fome.

Tentei respirar e me concentrar na parte da ciência médica. Forneci o medicamento de que ela necessitava, quantidade suficiente para dois meses de tratamento, e combinamos que, nos dias em que ela não tiver acesso a qualquer alimentação, não deve tomar o remédio, pois ele age regulando o nível de açúcar no sangue, fazendo com que ela, sem nutrição adequada, possa ter crises de hipoglicemia. Ela agradeceu: “Dios te bendiga”, sorrui e foi embora.

Essa situação que vivi é um exemplo de como é difícil tomar decisões clínicas com base em evidências científicas em casos assim, para os quais a ciência médica não tem respostas plenas, pois a maior patologia é a social: a fome. Esses e tantos outros casos semelhantes que atendo me mostram a dificuldade desse trabalho, mas é preciso coragem para estar diante de tanto sofrimento humano, e persistir na caminhada. Às vezes sinto que apenas a nossa presença profundamente conectada é curativa para essas pessoas. Sinto tantas angústias, mas é preciso respirar e me concentrar no próximo paciente. E seguir em frente.

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