República Democrática do Congo além do Ebola

Renata Viana trabalho no departamento de assuntos humanitários na RDC e explica um pouco da sua atuação

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Um telefonema e aquele frio na barriga. Em geral é assim que recebemos propostas tentadoras para participarmos de um projeto de Médicos Sem Fronteiras (MSF) quando integramos a lista de profissionais internacionais da organização. É também uma oportunidade de vivenciarmos novos desafios e lições de vida. A sensação confunde empolgação e apreensão, mas não hesitei em dizer sim ao meu quarto projeto com MSF. Informei que precisaria de um tempo de descanso para me organizar, pois ainda estava engajada num trabalho de nove meses com a organização num projeto de assistência médico-humanitária a refugiados sírios. Meu destino seguinte seria a República Democrática do Congo (RDC) e o meu objetivo: contribuir para a melhoria de condições de vida de pessoas em dificuldades.

Minha chegada à África foi por Kigali, capital de Ruanda, onde passei uma noite. No dia seguinte, partimos de carro (eu e mais dois colegas, além do motorista) e encaramos cerca de 6 horas de viagem até a fronteira com a RDC em ótimas estradas, cruzando lindas paisagens montanhosas, margeando com frequência o lago Kivu (que pertence aos dois países), passando por pequenas cidades e plantações de banana, café, chá etc. O destino final foi Bukavu, cidade congolesa fronteiriça com Ruanda e que se situa na província do Kivu do Sul. Aliás, cruzamos a fronteira a pé – atravessando uma ponte – e um carro diferente nos aguardava do outro lado. O bairro onde se situa nossa base é majoritariamente sem asfalto (assim como boa parte das não tão numerosas estradas do país) e a poeira (pelo menos durante as épocas mais secas) não faz cerimônia, nem pede licença; vai se entranhando onde bem entende.

MSF tem na RDC inúmeros projetos, inclusive com equipes de emergência que se deslocam de acordo com o lugar onde as necessidades são maiores, almejando levar um pouco de alívio ao maior número possível de localidades. A maioria das nossas atividades se dá em locais de difícil acesso, seja por razões geográficas, seja por motivos de segurança. Às vezes, após enfrentarmos de carro metade de um dia em estreitas e sinuosas estradas de barro, ainda precisamos utilizar barcos ou mesmo pequenos aviões ou helicópteros para conseguirmos alcançar nossos destinos. Em alguns casos, precisamos utilizar motos ou caminhar por trilhas para completar a viagem rumo a alguma comunidade. Jornadas assim podem ser impensáveis para quem não tem acesso a transportes e possivelmente já se encontra em frágeis condições de saúde. Durante esses longos percursos, as belas montanhas, lagos e rios revelam constantemente as marcas e evidências da fragilidade humana, de uma forma que mesmo em telas de ficção temos dificuldade de digerir.

Habitações precárias e/ou improvisadas, falta de saneamento e de acesso à água potável, terrenos difíceis, ausência de estradas e/ou de transportes públicos e longínquas (ou precárias) instalações de saúde fazem parte do cenário da RDC, um dos países mais pobres do mundo em termos socioeconômicos. Doenças que poderiam ser tratadas ou até evitadas (como o sarampo e a cólera, por exemplo), acabam se tornando gravíssimas e, consequentemente, apresentando alarmantes taxas de mortalidade (inclusive acima do Ebola).   
O país é um dos maiores do continente africano e representa uma das mais complexas e longas crises humanitárias mundiais. Por esta razão, os adjetivos ‘endêmica’ ou ‘crônica’ frequentemente acompanham a descrição da crise no país. MSF atua na RDC desde 1977 e já tratou milhões de pessoas durante esse período. Nossos programas no Kivu do Sul focam em sobreviventes de violência, saúde reprodutiva, pediatria, desnutrição, cólera, sarampo, malária, HIV e tuberculose, além de emergências e epidemias, como o atual surto de Ebola.

Eu integro uma equipe ligada à coordenação dos projetos da região do Kivu do Sul e sou responsável pelo Departamento de Assuntos Humanitários. Trabalho em constante contato com o coordenador de operações (ou com o coordenador-geral de MSF na RDC), o coordenador médico e os coordenadores de cada um de nossos projetos na região. Minhas responsabilidades incluem pesquisa, monitoramento e análise sobre diversos temas humanitários que observamos nas regiões aonde levamos cuidados de saúde. MSF foi criada por um grupo de médicos e jornalistas em 1971 motivados em conciliar a assistência médica com a necessidade de não se calarem diante de violações contra a dignidade das pessoas. E assim, coletando dados e relatos dos nossos profissionais de saúde e de pessoas das comunidades onde atuamos, contribuo na elaboração de estratégias que possam influenciar opiniões e comportamentos. O objetivo é mobilizar mudanças de políticas e práticas para a melhoria das condições de vida das populações que atendemos.

 Estou apenas iniciando uma jornada que será de 12 meses, mas a experiência, já posso antever, será repleta de desafios e momentos não tão fáceis de encarar, sobretudo quando estamos longe de nossas famílias. Mas não tenho dúvidas de que o aprendizado será imenso e, por isso, me sinto grata por ter dito ‘sim’ naquele telefonema de algum tempo atrás. E, assim, sigo trabalhando por aqui motivada pelas palavras de James Orbinski, Presidente Internacional de MSF no discurso de recebimento do prêmio Nobel da paz em 1999: “não temos certeza de que palavras possam sempre salvar vidas, mas sabemos que o silêncio pode certamente matar”.
 

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