Bem-vinda a “Jahun Paradise”

A obstetra Marcella Israel conta seu trabalho em uma maternidade de MSF na Nigéria

Marcella Israel conta seu trabalho em uma maternidade de MSF na Nigéria

“Bem-vinda ao Paraíso Jahun”. Fui recebida assim em Jahun, onde vim trabalhar por dois meses na maternidade coordenada por MSF. Fiquei curiosa: paraíso no interior da Nigéria? Perguntei de onde surgiu a expressão e ninguém sabia me dizer, reafirmavam: “esse hospital é o paraíso”.

Não sei afirmar exatamente se é o paraíso, mas mágica é feita aqui diariamente. Jahun é uma cidade no estado de Jigawa, no norte da Nigéria, com população predominantemente rauça, altos níveis de analfabetismo, desnutrição, mortalidade neonatal e materna. A mortalidade materna pode chegar a 800/100.000 nascimentos, mais de 10 vezes maior que a mortalidade materna brasileira. Na cultura local, há um ditado que diz que, quando a mulher engravida, um dos seus pés está na Terra e o outro no céu.

É o que vemos aqui: casos extremamente graves todos os dias, toda hora, a cada minuto. Não é raro ter mais de uma paciente apresentando urgência obstétrica ao mesmo tempo: hemorragias, convulsões, intoxicações pelas ervas locais, infecções (frequentemente mais de uma condição na mesma paciente). E a taxa de ocupação dos nossos leitos é tão alta que precisamos improvisar e colocar duas (ou mais) pacientes na mesma cama. Numa das passagens de plantão chegou uma gestante convulsionando na cadeira de rodas e meu colega nigeriano olhou confuso pro nosso pré-parto lotado: “precisamos arrumar um cantinho pra ela!”.

Mas sim, um projeto apaixonante. Minha primeira amostra do paraíso foi começar a trabalhar com a equipe nigeriana: extremamente receptivos, competentes e motivados. A equipe nacional é bem entrosada com os profissionais de MSF e se desdobra para otimizar o cuidado, identificar os casos graves, estabilizar as pacientes, definir condutas e intervir, quando necessário. Meus colegas nigerianos estão sempre de bom humor, buscando entre um e outro caso grave uma oportunidade de dar risada, de brincar. Descobri que esse bom humor é uma forma de os manter motivados: muitos são de outras cidades de Jahun e se mudaram para longe de suas famílias para trabalhar com MSF.

Acima de tudo, temos as pacientes e seus bebês como exemplos de força e superação. Tivemos um caso de hemorragia pós-parto grave, a paciente perdeu o útero, precisou receber transfusão de sangue e foi encaminhada para a nossa pequena UTI. Quando fui vê-la no dia seguinte, não sabia como a encontraria, pois a perda sanguínea havia sido muito importante. Para minha feliz surpresa, ela estava sentada no leito amamentando e sorriu quando me viu.

Em outro caso de hemorragia pós-parto, enquanto administrávamos a medicação e fazíamos os procedimentos para conter o sangramento, senti uma mão delicada que tocava meu antebraço: a paciente estava usando a barra do vestido para me limpar de um pouco do cocô do bebê que havia respingado. Quando eu percebi, trocamos olhares, ela sorriu como quem serve uma xícara de café e continuou me limpando.

Uma outra paciente foi admitida devido abortamento, estava com anemia grave e ainda tinha restos dentro do útero. Estava no leito e, ao me ver, deu um pulo no leito: “não, não! Eu vou embora, eu não posso pagar! ”. Gastamos alguns minutos para fazê-la entender que os serviços prestados por MSF são gratuitos.

Tem sido muito gratificante fazer parte desse projeto. Meus presentes são diários e inestimáveis: chorinhos dos recém-nascidos, sorrisos das mães que tiveram partos seguros, acompanhantes tentando se comunicar comigo misturando o rauça com gestos, e o convívio estimulante com os colegas locais. E sim, se o paraíso for como Jahun, quero ir para lá.
 

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