Aqui, no Haiti

A administradora Renata Viana conta como foi trabalhar no Haiti com MSF, logo depois de deixar um projeto no Quênia

Eu ainda fazia parte de um projeto de Médicos Sem Fronteiras (MSF) no Quênia quando recebi a proposta de participar de um outro projeto, no Haiti. Assim, num intervalo de 35 dias, passei por três continentes antes de chegar ao Caribe, onde passaria os seis meses seguintes ocupando pela segunda vez a posição de administradora com a organização.

Quando pensamos no Haiti, automaticamente nos vêm à mente terremotos e furacões, assim como dificuldades políticas, econômicas e sociais. De fato, desde a minha chegada, as primeiras impressões da capital Port-au-Prince a respeito da vida local foram, por exemplo: os frequentes engarrafamentos e que as partes mais baixas da cidade são bastante caóticas; as ruas possuem condições precárias e as sinalizações são praticamente inexistentes; feiras e barracas de comércio informal se espalham ao longo de praticamente todo o meu percurso do aeroporto até o local onde eu me hospedaria por alguns dias. Sou do Rio de Janeiro e os frágeis casebres construídos de forma irregular e perigosa pelos morros e montanhas nos arredores da cidade não me chocaram exatamente, mas sem dúvida me lembraram da vulnerabilidade que dificuldades socioeconômicas podem causar aos seres humanos.   

No entanto, minha base de trabalho não seria na capital, mas sim no sul do país, a 260 quilômetros de Port-au-Prince, numa cidade de cerca de 8 mil habitantes na costa haitiana chamada Port-à-Piment. Assim, após quase sete horas de estrada, tendo passado por belas montanhas, magníficas praias típicas do Caribe e algumas cidades e vilarejos, finalmente cheguei ao meu destino, minha casa e nova base de trabalho onde eu comporia a equipe internacional de um projeto de MSF. Essa equipe muda constantemente, pois as pessoas chegam e partem em diferentes momentos. À época da minha chegada, por exemplo, éramos um grupo de oito estrangeiros de diversos países, como Bélgica, Brasil, Burkina Faso, República Democrática do Congo e França. Os profissionais nacionais, por sua vez, são normalmente maioria nos projetos de MSF e aqui contamos com um total de 147 haitianos (110 funcionários de MSF mais 37 do Ministério da Saúde Pública, com o qual colaboramos). No total, compomos as mais variadas funções necessárias para as atividades hospitalares, administrativas e também de construção e logística.

MSF está presente no país mais pobre das Américas há mais de 25 anos, período no qual a ONG pode fazer um extenso trabalho de ajuda médico-humanitária em diversos níveis, tanto no que concerne a catástrofes naturais, quanto no tocante a dar suporte e alívio no tratamento de determinadas doenças, campanhas de vacinação, apoio a maternidades, dentre outras atividades sanitárias.

O projeto de Port-à-Piment foi criado após o furacão Mathew, uma catástrofe que afetou seriamente esta parte do país. Após o período de urgência e do grande trabalho de MSF para dar assistência às vítimas, a organização decidiu abrir um projeto regular para oferecer suporte gratuito aos centros de saúde da região, que, mesmo antes do furacão já apresentavam uma situação precária e, portanto, muito frágil. O principal objetivo foi o de facilitar o acesso aos cuidados primários e preventivos de qualidade para a população local, já que não há sistema de saúde gratuita disponível no Haiti. Além disso, MSF construiu uma nova maternidade para o hospital onde realizamos a maior parte de nossas atividades de apoio. E, percebendo outras necessidades ligadas à vulnerabilidade das comunidades no entorno de Port-à-Piment no que diz respeito a doenças transmitidas por água contaminada (como cólera), MSF construiu pontos de acesso à água potável em alguns lugares estratégicos, o que foi acompanhado de um grande trabalho de educação, sensibilização e promoção da saúde junto à população. 

Sob o ponto de vista administrativo, como Gerente de Recursos Humanos e Finanças, observo a maior parte das atividades a partir da gestão das despesas e do pessoal. Por isso, numa posição como a minha, é essencial fazer um esforço de tempos em tempos para deixar os papéis, documentos e faturas de lado e sair do escritório para abrir meus horizontes e enriquecer minha experiência, tanto profissional quanto pessoal. De fato, o momento mais tocante que vivenciei nesse projeto foi uma visita aos pontos de acesso à água tratada que mencionei anteriormente. Depois de cruzar belíssimos rios com o veículo e subir a montanha, encontramos pessoas muito amáveis que fizeram questão de cumprimentar os « sem fronteiras »: alguns chegaram até a fazer pequenos discursos de agradecimento. Todos estavam realmente contentes e sinceramente gratos por nosso trabalho.

Os principais desafios que eu encontro no terreno no Haiti são: trabalhar (e viver) sob o calor úmido, somado aos constantes ataques de mosquitos; aceitar as limitações locais de um país onde quase metade da população acima dos 18 anos é analfabeta; a difícil comunicação com alguns profissionais locais (que falam créole – uma das línguas oficiais do país –, mas que não dominam o francês); trabalhar num país onde a população em geral busca explicações sobrenaturais para os diversos males que lhes afligem desde sempre. Mas, principalmente, o que se mostra como uma dificuldade recorrente entre aqueles que fazem trabalho humanitário: o desafio de não se deixar abater pela pobreza e insalubridade da comunidade ao redor do local onde moramos e trabalhamos (frequentemente tenho que me lembrar de que fazemos o que podemos, mas que há coisas que não seremos capazes de mudar…).  

De qualquer maneira, testar a si mesmo fora de sua zona de conforto – situação que se agrava quando não estamos próximos de nossas famílias e onde nem sempre temos opções de comunicação – para ajudar a reduzir as necessidades em outros lugares constitui uma das grandes razões de querer integrar o setor humanitário. Ganhamos uma bagagem imensa com essa escolha. Resultado? Me sinto sinceramente orgulhosa de ser uma « sem fronteiras » e, assim como contei sobre minha experiência no projeto MSF no Quênia, partimos para tentar fazer alguma diferença na vida dos outros e, finalmente, nos damos conta de que uma dessas vidas é exatamente a nossa.

Leia também o relato de Renata Viana sobre seu trabalho com MSF no Quênia: https://www.msf.org.br/diarios-de-bordo/nos-bastidores-da-ajuda-humanitaria
 

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