Violência extrema no Haiti está “se espalhando e ameaçando a todos”

Priscille Cupidon, coordenadora de atividades médicas do projeto de MSF em áreas de violência urbana em Porto Príncipe, explica a situação de insegurança e os impactos no sistema de saúde na cidade.

Área de Delmas 18, em Porto Príncipe, após confrontos entre grupos armados e a polícia. © Corentin Fohlen/Divergence

Sou médica na capital do Haiti, Porto Príncipe. Ouço tiros enquanto grupos armados e a polícia disputam pelo controle da nossa cidade.

Este tipo de conflito começou muitos anos atrás, mas nas últimas semanas tem se tornado cada vez mais violento, como uma guerra. No dia 28 de fevereiro, foi anunciado que as eleições poderiam ser adiadas até agosto de 2025. Grupos civis armados reagiram se unindo contra o governo, atacando delegacias da polícia, escritórios administrativos, bancos, portos, aeroportos e outras instituições estatais.

Agora, a violência é como uma gangrena, se espalhando e ameaçando a todos nós. Por toda a cidade muitas pessoas têm fugido porque suas casas foram queimadas ou saqueadas por grupos que atacam seus bairros. Cada vez mais, áreas da cidade são esvaziadas à medida que o conflito avança. Dezenas de milhares de pessoas se mudaram para escolas, igrejas e quadras de esportes em condições indignas onde perdem sua privacidade e ficam em situação de maior vulnerabilidade.

A situação em Porto Príncipe hoje é uma crise humanitária e demanda uma resposta urgente.”

– Priscille Cupidon, coordenadora de atividades médicas do projeto de MSF em áreas de violência urbana em Porto Príncipe.

Outras permanecem em suas casas, que se tornaram inabitáveis, expostas a tiroteios e saques. A violência recente dificultou até o acesso à água potável em alguns bairros porque os caminhões pipa não puderam reabastecê-los.

A situação em Porto Príncipe hoje é uma crise humanitária e demanda uma resposta urgente, especialmente para necessidades vitais, como assistência médica e fornecimento de serviços de água e saneamento.

• Leia também: pesquisa de MSF revela níveis extremos de violência em Porto Príncipe, no Haiti

Eu coordeno uma clínica móvel de Médicos Sem Fronteiras (MSF) que oferece assistência médica em alguns dos bairros da cidade impactados pela violência crônica. Nós vemos efeitos diretos e indiretos na saúde dos nossos pacientes. Isso inclui adultos sofrendo para lidar com doenças crônicas, como diabetes, e crianças com febre e diarreia. O estresse extremo frequentemente ocasiona traumas mentais e hipertensão. Muitas pessoas têm infecções de pele devido à falta de água para higiene.

Nossa equipe visitou um bairro próximo ao centro da cidade no dia 19 de março, ao qual não tínhamos acesso desde o dia 29 de fevereiro. As necessidades médicas nessa área são muito grandes e devem aumentar agora que o atendimento médico é tão limitado.

Por exemplo, vimos pacientes com tuberculose que não se sentem seguros em sair do bairro para realizar o tratamento por causa dos conflitos e da tensão entre as diferentes zonas. Desde então, barricadas e confrontos em toda a cidade têm impedido que nossa equipe trabalhe com as clínicas móveis, deixando esses pacientes em uma situação muito vulnerável.

Homens armados trocam tiros com a polícia no distrito de Bel Air, em Porto Príncipe. © Corentin Fohlen/Divergence

As mulheres que temos atendido em nossas clínicas móveis nos últimos meses geralmente são sobreviventes de violência, inclusive sexual. Como médica e mulher, posso dizer que muitas têm medo de falar sobre isso porque a ameaça ainda está na comunidade.

O estigma social também pode fazer com que as sobreviventes relutem em falar porque não querem que suas famílias e vizinhos saibam o que aconteceu com elas. Nós fazemos tudo que podemos para que as sobreviventes se sintam seguras ao confiarem em nós, mas, quando chegam até nós, muitas já estão grávidas ou têm alguma infecção sexualmente transmissível. Nós as acompanhamos até nossa clínica principal de atendimento a sobreviventes de violência sexual.

Durante anos, profissionais de saúde do Haiti têm trabalhado em um ambiente difícil. A profunda crise política, econômica e social deixou as instalações médicas com poucos recursos. Nosso sistema de saúde está desmoronando.

Diariamente, a violência também tem impedido pacientes e profissionais de acessar instalações médicas.”

– Priscille Cupidon, coordenadora de atividades médicas do projeto de MSF em áreas de violência urbana em Porto Príncipe.

Como outros profissionais, trabalhadores de saúde têm sido alvo de violência individual à medida que a situação se agrava. Médicos e enfermeiros deixaram o país e foram para os Estados Unidos e outros lugares, incluindo amigos e colegas meus. Agora não restam muitos de nós.

Diariamente, a violência também tem impedido pacientes e profissionais de acessar instalações médicas. Alguns hospitais, como o Hospital Universitário Estatal do Haiti, não funcionam no momento. Outro hospital universitário, o Saint-François de Sales, foi completamente vandalizado e médicos em treinamento não podem mais concluir sua formação lá. O único hospital universitário ainda em funcionamento é o La Paix, mas a unidade está frequentemente lotada e com falta de equipamentos. Tragicamente, mais mulheres com gestação de alto risco podem morrer em decorrência dessa situação.

Paciente baleado no pé durante confrontos entre grupos armados e a polícia recebe tratamento na sala de cirurgia do hospital de Tabarre de MSF. © Réginald Louissaint Junior

O principal porto e o principal aeroporto do Haiti estão fechados, e a República Dominicana aumentou as restrições na fronteira entre os países. Devido à instabilidade das últimas semanas, a saída de profissionais do Haiti, incluindo médicos e outros profissionais de saúde, pode aumentar quando for possível viajar novamente.

Aqueles de nós que ainda estão no Haiti fazem o possível para ajudar as comunidades quando podemos, mas nós também necessitamos de apoio, especialmente em saúde mental, porque estamos testemunhando muita violência e crueldade.

Gostaríamos de recuperar pelo menos a serenidade que tínhamos alguns anos atrás. Hoje, trabalhamos, vamos para casa e nos trancamos em “gaiolas”. Estou convencida que todos meus irmãos e irmãs haitianos vão se unir a mim para dizer que o que queremos é viver nossas vidas. É um direito que perdemos.

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