Sudão: população civil é alvo de atrocidades em massa em Darfur do Norte

Em novo relatório, MSF denuncia violência implacável na região, incluindo massacres étnicos

Violência força deslocamento de pessoas em massa. Sudão, abril de 2025. ©Jérôme Tubiana

Atrocidades em massa estão ocorrendo no estado de Darfur do Norte, no Sudão, alerta relatório de Médicos Sem Fronteiras (MSF) publicado hoje (03/07), com o apelo para que as partes em conflito parem com a violência – étnica e indiscriminada – e facilitem uma resposta humanitária imediata em larga escala.

MSF manifesta sérias preocupações com as ameaças de um ataque total às centenas de milhares de pessoas em El Fasher, capital do estado, o que levaria a ainda mais derramamento de sangue.

As pessoas não são atingidas ‘apenas’ por intensos confrontos indiscriminados […], mas também são ativamente visadas pelas Forças de Apoio Rápido e seus aliados, principalmente com base em sua etnia.”

– Michel Olivier Lacharité, coordenador de emergências de MSF

Com a intensificação do conflito na região desde maio de 2024, a população continuou a ser a principal vítima. O relatório “Besieged, Attacked, Starved” (“Sitiados, atacados, famintos”, em tradução livre) descreve uma situação desesperadora para os civis em El Fasher e áreas vizinhas, que exige atenção e resposta imediatas.

“As pessoas não são atingidas ‘apenas’ por intensos confrontos indiscriminados entre as Forças de Apoio Rápido (RSF, sigla em inglês) e as Forças Armadas Sudanesas (SAF, sigla em inglês) e seus respectivos aliados – mas também são ativamente visadas pelas Forças de Apoio Rápido e seus aliados, principalmente com base em sua etnia”, explica Michel Olivier Lacharité, coordenador de emergências de MSF.

O relatório expõe padrões sistemáticos de violência, que incluem saques, assassinatos em massa, violência sexual, sequestros, fome e ataques contra mercados, instalações de saúde e outras infraestruturas civis. O documento está baseado em observações diretas das equipes de MSF e mais de 80 entrevistas realizadas entre maio de 2024 e maio de 2025 com pacientes e pessoas que foram deslocadas de El Fasher e do acampamento de Zamzam.

“À medida que os pacientes e as comunidades contam suas histórias para nossas equipes e nos pedem para nos manifestarmos, pois seu sofrimento dificilmente está na agenda internacional, nos sentimos compelidos a documentar esses padrões de violência implacável que têm destruído inúmeras vidas em meio à indiferença e à inação geral no último ano“, diz Mathilde Simon, consultora de assuntos humanitários de MSF.

O relatório “Sitiados, atacados, famintos” também detalha como as Forças de Apoio Rápido e seus aliados conduziram uma ofensiva terrestre em larga escala em abril deste ano no acampamento de Zamzam, que abriga pessoas deslocadas, perto de El Fasher.

Em menos de três semanas, cerca de 400 mil pessoas tiveram que fugir de Zamzam em condições terríveis.

Hitham, enfermeiro de MSF, verifica os sinais vitais de uma mulher idosa no posto de saúde de MSF em Tawila Umda, após nova onda de deslocamento de pessoas vindas do acampamento de Zamzam. Sudão, abril de 2025. ©Thibault Fendler/MSF

Grande parte da população do acampamento se deslocou para El Fasher, onde permaneceu presa, fora do alcance da ajuda humanitária e exposta a ataques e mais violência em massa.

Dezenas de milhares de pessoas fugiram para Tawila, a cerca de 60 quilômetros de distância, e para os acampamentos na fronteira com o Chade, onde centenas de sobreviventes da violência receberam cuidados das equipes de MSF.

 

Risco de ataque total para “limpar El Fasher”

“Diante das atrocidades em massa com motivação étnica cometidas contra o povo Masalit em Darfur Ocidental em junho de 2023, e dos massacres perpetrados no acampamento de Zamzam em Darfur do Norte, tememos que esse cenário se repita em El Fasher. Esta onda de violência precisa acabar”, declara Simon.

Várias testemunhas relataram que os soldados das Forças de Apoio Rápido mencionaram planos para “limpar El Fasher” de sua comunidade não árabe.

Desde maio de 2024, as Forças de Apoio Rápido e seus aliados sitiaram El Fasher, o acampamento de Zamzam e outras localidades vizinhas, privando as comunidades de alimentos, água e cuidados médicos. Isso contribuiu para a disseminação da fome e debilitou a resposta humanitária.

Em Zamzam, às vezes passávamos três dias por semana sem comer.”

– Relato de um homem às nossas equipes

Os repetidos ataques às instalações de saúde forçaram MSF a encerrar nossas atividades médicas em El Fasher, em agosto de 2024, e no acampamento de Zamzam, em fevereiro deste ano.

Somente em maio de 2024, as instalações de saúde apoiadas por MSF em El Fasher sofreram pelo menos sete episódios violentos de bombardeios, bombas ou tiros, por todas as partes em conflito.

Os ataques aéreos indiscriminados conduzidos pelas Forças Armadas Sudanesas tiveram consequências devastadoras. “As Forças Armadas Sudanesas bombardearam nosso bairro por engano e depois se desculparam. Os aviões do grupo às vezes bombardeavam áreas civis sem nenhuma [presença] das Forças de Apoio Rápido, eu vi isso em diferentes lugares”, relatou uma mulher de 50 anos.

 

Violência durante o deslocamento

Com o nível assustador de violência nas estradas que saem de El Fasher e Zamzam, muitas pessoas ficam presas ou podem ser mortas ao fugir. Homens e meninos correm alto risco de homicídios e sequestros, enquanto mulheres e meninas são submetidas à violência sexual generalizada.

A maioria das testemunhas também relata riscos maiores para as comunidades Zaghawa. “Ninguém poderia sair [de El Fasher] se dissesse que era Zaghawa”, conta uma mulher deslocada. Outro homem nos conta que as Forças de Apoio Rápido e seus aliados estavam “perguntando às pessoas se elas pertenciam aos Zaghawa e, se dissessem que sim, eles as matariam”.

Após ataques ao acampamento de Zamzam, milhares de pessoas foram forçadas a se deslocar. Sudão, abril de 2025. ©Jérôme Tubiana

“Eles só deixavam passar mães com crianças com menos de 5 anos de idade”, lembra uma mulher sobre sua jornada de fuga para o leste do Chade. “Outras crianças e homens adultos não passavam. Homens com mais de 15 anos de idade dificilmente conseguem atravessar a fronteira [para o Chade]. Eles os pegam, empurram para o lado, e depois só ouvimos um barulho, tiros, indicando que foram mortos […] Cinquenta famílias vieram comigo. Não havia nem mesmo um garoto de 15 anos ou mais entre nós.”

 

Cerco gera fome generalizada

A situação nutricional catastrófica continuou a piorar à medida que o cerco se intensificava: “Em Zamzam, às vezes passávamos três dias por semana sem comer”, relatou um homem às nossas equipes, sobre como estava a situação no acampamento há três meses.

“As crianças morreram de desnutrição. Estávamos comendo ‘ambaz’ [resíduo de amendoim moído para óleo], como todo mundo, embora geralmente seja usado para animais”, disse uma mulher deslocada.

“Zamzam foi completamente bloqueado”, contou outra pessoa deslocada. “Os poços de água dependem de combustível, e não havia acesso a combustível, então todos eles pararam de funcionar. A água era muito limitada e cara”.

MSF pede que as partes em guerra poupem os civis e respeitem suas obrigações de acordo com o Direito Internacional Humanitário.

As Forças de Apoio Rápido e seus aliados devem interromper imediatamente a violência étnica perpetrada contra as comunidades não árabes, interrompendo o cerco imposto a El Fasher. Também devem garantir rotas seguras para os civis que fogem da violência.

O acesso seguro e irrestrito a El Fasher e seus arredores deve ser concedido às agências humanitárias, para que forneçam a assistência extremamente necessária para a população.

A comunidade internacional, incluindo as instituições e os Estados-Membros da Organização das Nações Unidas (ONU), e os países que dão apoio às partes em conflito precisam se mobilizar urgentemente e exercer pressão para evitar mais violência em massa e permitir a entrega de ajuda emergencial.

Os recentes anúncios unilaterais de um possível cessar-fogo no Sudão ainda não se traduziram em mudanças concretas, e o tempo está se esgotando.

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