Síria: “O medo é constante”

Um médico que recebe apoio de MSF baseado em uma pequena cidade a noroeste de Idlib, no noroeste da Síria, explica o medo que permeia sua vida diária e fala sobre os momentos que seguiram o ataque a uma escolha

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Por treinamento, sou um neurologista, mas ao longo dos últimos três anos, me tornei especialista em ferimentos emergenciais. Na realidade, diante da situação atual, todos trabalhamos em tudo.
A situação em minha cidade é difícil. Não temos eletricidade contínua e dependemos de geradores e outros recursos para garantir energia.

A clínica na minha cidade foi estruturada há cerca de 10 anos, antes do início da guerra, e era financiada por uma organização de caridade. Ali trabalhavam voluntários com salários reduzidos. Durante a guerra, o suporte dessa organização diminuiu muito e nós tentamos conseguir apoio onde podíamos, mas, até agora, não houve estabilidade. O prédio está se degradando e não suportaria um ataque. Todos estão tensos e o medo é constante. Há dias em que eles lançam bombas, há dias em que não, mas todos os dias há aviões sobrevoando o local.

Um grande hospital cirúrgico
Passo dois dias trabalhando em um hospital maior e os outros cinco aqui. O hospital maior fica a cerca de 30 km de distância, e é o principal provedor de cuidados médicos técnicos para uma ampla área – estamos falando de cerca de 150 a 200 mil pessoas. A estrada até lá é terrível, montanhosa e muito difícil para as ambulâncias – e há apenas uma ambulância em funcionamento em nossa cidade, que leva três ou quatro feridos de uma só vez, na medida em que veículos normais, como táxis, são o meio de transporte de pacientes.

O outro hospital em que trabalho é o maior e mais importante centro da região. Tem capacidade para trabalho cirúrgico intenso, sendo realizadas cerca de 10 a 15, às vezes até 20, cirurgias por dia. É o maior centro onde já trabalhei em toda a minha vida.

O hospital é apoiado por diversas organizações, incluindo Médicos Sem Fronteiras. Mesmo com esse apoio, considerando-se o tamanho do hospital e suas necessidades, todos os suprimentos são rapidamente utilizados.

O dia do bombardeio à escola
Eu estava em meio a um dia normal de trabalho no hospital quando, de repente, ouvi que havia acontecido um ataque no vilarejo de Birat Armanaz. Era a primeira vez que a pequena região vivenciava um ataque, mas foi devastador, porque uma escola cheia de crianças foi atingida. Pelo que soube pelos colegas na região, um avião sobrevoava a área entre 9h30 e 10h00 quando atingiu a escola. O diretor, um professor e cinco crianças morreram imediatamente. Entre 30 e 35 pessoas feridas foram levadas para a clínica onde eu normalmente trabalho, e a equipe ofereceu primeiros cuidados de emergência. Os casos mais graves foram enviados a nós, no hospital.

Recebemos 20 pessoas, e cerca de 15 outras em condições menos críticas permaneceram na clínica. Duas das crianças morreram logo na chegada ao hospital. As demais pessoas estavam terrivelmente feridas – amputações, queimaduras na face, e por aí vai. É difícil colocar em palavras. As crianças levadas até nós estavam entre a vida e a morte.

Batalhando para sobreviver
O primeiro caso que chegou foi uma menina de cerca de 11 anos de idade. Seu estômago estava completamente aberto. O pessoal dos primeiros socorros de emergência havia tentado fechar seu estômago com uma espécie de curativo, uma coisa bem simples, sem pontos. Era impressionante que ela ainda estivesse viva apesar do imenso ferimento e do fato de seus órgãos internos estarem praticamente fora de seu corpo, mesmo que a equipe de primeiros socorros tenha tentado devolvê-los a seus locais originais. Imediatamente, nós conduzimos uma cirurgia e ela respondeu bem nas primeiras duas horas. A pequena menina tinha uma incrível força de vontade. Ela batalhava muito para permanecer viva. Ainda assim, no final, ela sucumbiu aos seus ferimentos. Foi o pior caso que tratamos naquele dia.

Praticamente em seguida, outra criança foi trazida. Ela tinha cerca de oito anos de idade e apresentava ferimentos em seu ombro, próximo ao pescoço, que sangravam em abundância. Ela havia perdido muito sangue e estava em seu último suspiro. Tentamos o máximo que pudemos, mas, depois de 30 minutos de cirurgia, ela também faleceu.

Entre a esperança e a penúria
Não tenho tempo para pensar sobre como lidamos com aquela situação. Como profissionais médicos, estamos habituados a receber casos como esses. O que é ainda mais difícil de lidar são os aviões no céu. Eles estão ali quase que permanentemente. É muito duro viver com isso. Para mim, esse último período foi muito difícil. É uma oscilação entre esperança e penúria. É difícil sintetizar as experiências de anos de guerra em palavras. Tudo isso realmente impactou nossas vidas, nossa mentalidade, e tudo o que esperamos é que Deus nos dê a capacidade para superar.

Depoimento de março/2015
 

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