Salvando duas vidas em meio às inundações no Sudão do Sul

A obstetriz de MSF, Erin Lever, conta a história de uma mulher grávida que necessitava de atendimento urgente e contou com sua família para chegar até o hospital

Foto: Sean Sutton (A imagem mostra as pessoas afetadas pelas enchentes no estado de Unity.)

Nos últimos meses, tenho trabalhado com Médicos Sem Fronteiras (MSF) em um acampamento para deslocados em Bentiu, no Sudão do Sul. O hospital de MSF aqui é a única unidade de saúde secundária que atende os 130 mil residentes do acampamento. Na maternidade, recebemos mulheres que estão com intercorrências na gravidez e, muitas vezes, encaminhamentos de emergência que chegam de última hora em condições muito críticas.

Como obstetriz, estou sempre de plantão no rádio para ajudar a equipe em casos complicados. Uma noite, recebo uma ligação informando que uma mulher nas últimas semanas de gravidez foi admitida com um sangramento significativo. Isto é uma emergência médica!

 

A longa jornada

Está escuro. Quando entro em nossa maternidade, nossa área de espera do lado de fora está extraordinariamente lotada. Há pelo menos dez homens. Um dos meus colegas nos conta que são familiares da paciente e que, quando o seu estado se agravou, partiram a pé para levá-la ao hospital.

As inundações de 2021 são as piores que o Sudão do Sul testemunhou nos últimos 60 anos. Elas quase cercaram o acampamento, e muitos vilarejos estão isolados de tudo, incluindo de acesso a alimentos e cuidados de saúde.

Esses homens caminharam por três horas pelas águas da enchente, no meio da noite, carregando a gestante em um cobertor. Eles explicam aos meus colegas do Sudão do Sul que, nas partes mais fundas, os homens mais altos se revezavam no transporte e os homens mais baixos nos trechos mais rasos. Eles estão encharcados, enlameados e parecem exaustos. Toda a equipe, incluindo obstetrizes que tiveram vidas incrivelmente desafiadoras, estão impressionadas com sua resiliência.

Foto: Jacob Goldberg/MSF (Vista aérea sobre o campo de deslocados de Bentiu)

 

Condição crítica

Rapidamente, avaliamos a paciente. Ela está com um quadro de anemia leve devido à perda de sangue, mas está estável, embora ainda esteja sangrando. A bebê, felizmente, ainda está viva.

Suspeitamos de um descolamento parcial da placenta, onde a placenta começa a se separar da parede uterina antes do parto. Esta pode ser uma das condições mais críticas na gravidez. Pode causar uma hemorragia com risco de morte para a mãe e, como o fluxo de sangue para a placenta está comprometido, a criança pode falecer.

Temos uma pequena unidade de armazenamento de sangue aqui, onde coletamos doações de voluntários que vivem no acampamento. Somos uma das únicas maternidades da região com a sorte de ter esta opção.

No entanto, a reserva de sangue costuma ser um desafio, principalmente para grupos sanguíneos mais raros. Felizmente, o grupo sanguíneo desta paciente é comum, o que significa que estamos melhor preparados se ela precisar de uma transfusão.

 

Sem respirar

Durante a avaliação, constatamos que a paciente já está no início do trabalho de parto e conseguimos seu consentimento para acelerar o processo para que o sangramento pare e a criança tenha mais chances de sobrevivência.

Ela já teve várias gestações e, portanto, seu trabalho de parto avança rapidamente. A bebê nasce de forma rápida, mas não respira. Iniciamos o processo de ressuscitação. Isso é o que temíamos. É provável que a placenta esteja funcionando apenas parcialmente durante o trabalho de parto. Por fim, há um grito, e uma onda de alívio me invade. A menina está respirando sozinha. Ela vai ficar bem.

 

Duas emergências

Mas não há tempo para relaxar: a mãe tem uma forte hemorragia pós-parto. Iniciamos nosso protocolo de emergência de hemorragia e fica claro que a condição da paciente é instável e que ela precisará de uma transfusão. A perda de sangue é rápida e a paciente está mostrando sinais de que seu corpo não está lidando bem. Ela começa a perder a consciência. Já estamos no meio da noite e não temos pessoal suficiente para lidar com as duas emergências simultaneamente. No entanto, membros de nossa equipe de enfermagem neonatal nas proximidades intervêm para nos ajudar na emergência.

 

Intensificando

Como os estoques de sangue são difíceis de chegar, sempre podemos obter uma unidade de emergência do nosso banco de sangue, mas depois disso, o bem-estar do paciente geralmente depende da doação de familiares. Isso pode ser difícil às vezes, pois as pessoas tendem a doar sangue apenas em emergências. No entanto, nesta ocasião, os parentes da paciente se manifestam sem hesitação.

Muitos dos homens que carregaram esta paciente são adultos muito jovens. Seus corpos magros mostram as consequências das mais difíceis condições de vida. É comovente vê-los, tendo passado por uma imensa proeza física para chegar aqui, fazendo fila para doar um litro de sangue para nos ajudar a salvar seu parente.

 

Adrenalina e exaustão

No início da manhã, a paciente recebeu três unidades de sangue, e agora está claro que ela ficará bem. A equipe do turno da noite vai para casa; paralelamente a essa emergência, também estão atendendo as demais pacientes da maternidade. Estamos todos exaustos e sentindo os efeitos da nossa noite cheia de adrenalina.

Anos de instabilidade significam que o Sudão do Sul tem um sistema de saúde público confiável muito limitado e, nessa região, MSF oferece cuidados extremamente necessários e de alta qualidade. Mas as inundações estão afetando todos os aspectos da vida das pessoas, isolando-as, aumentando o risco de doenças como cólera e malária, além de dificultar ainda mais o acesso a serviços básicos. Sem o hospital de MSF, o trabalho de nossa equipe de maternidade e neonatologia, a força e a determinação da família da paciente e sua própria resistência, ela e sua bebê não teriam sobrevivido.

 

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