Profissionais brasileiros relatam crise humanitária sem precedentes em Gaza

Médico, enfermeira e jornalista de MSF que voltaram recentemente da Palestina participaram de evento no Rio de Janeiro

A situação humanitária vivida pela população da Faixa de Gaza não tem precedentes na história de Médicos Sem Fronteiras (MSF), com pessoas encurraladas em uma área cada vez menor de um território já pequeno, bombardeios constantes, bloqueios para ingresso de suprimentos e acesso cada vez mais restrito até mesmo aos itens mais básicos, como água e alimentos.

O relato foi feito durante evento realizado nesta quinta-feira, 26/06, no Rio de Janeiro, por profissionais da organização que retornaram recentemente de Gaza e da Cisjordânia. “Os seres humanos que permanecem lá estão em uma situação de degradação”, explicou a enfermeira Ruth Barros, que ficou entre março e maio na região norte de Gaza. “Estamos falando de necessidades humanas básicas, de água, alimento e abrigo. Todos esses três pilares estão completamente deteriorados”, disse ela, durante encontro realizado na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). A conversa com os profissionais de MSF foi mediada pelo jornalista Alexandre Roldão.

Mesmo com grande experiência, o médico Paulo Reis relatou seu assombro com a grande quantidade de vítimas com as quais teve que lidar no hospital de campanha da área central de Gaza onde esteve até meados deste mês. “Já trabalhei em zonas de guerra na Síria, Iraque, Iêmen, mas essa quantidade de vítimas e explosões, eu nunca havia visto”, relatou ele. “Em Gaza, a gente não fala que os bombardeios são diários, eles são ‘horários’: toda hora tem alguma bomba explodindo em algum lugar, não tem um momento em que você não escute. Os drones e os aviões militares estão lá 24 horas”, afirmou ele.

MSF enfrenta atualmente em Gaza uma situação de enorme dificuldade para realizar o trabalho de ajuda humanitária à população de cerca de 2,1 milhões de pessoas. As autoridades israelenses bloquearam totalmente a entrada de alimentos e suprimentos médicos entre o início de março e meados de maio. No final do mês passado, foi liberado o ingresso de um volume limitado de ajuda, o que é muito pouco em relação ao necessário. “O que entra hoje em Gaza é completamente insuficiente, é uma gota de água em um oceano de necessidades”, disse Ruth Barros.

Além da falta de suprimentos, a distribuição de alimentos foi transferida para uma recém-criada fundação sob a gestão de Israel e dos EUA. Em vez das centenas de postos existentes anteriormente, os pontos de distribuição foram limitados a menos de uma dezena e em poucas regiões do território, apoiando a estratégia militar de encurralamento da população local. As pessoas são obrigadas a

caminhar diversos quilômetros a pé sem a certeza de que voltarão com algum alimento e sob o risco de serem atingidas por tiros. Os incidentes com grande número de mortos e feridos se repetem quase diariamente.

Atualmente, a população está proibida de circular por mais de 80% do território e o Exército israelense emite com frequência ordens de desocupação que determinam a retirada de pessoas de uma determinada área, às vezes com poucas horas de antecedência ou, em alguns casos, minutos. Quem não sai corre o risco de ser alvo de bombardeio, e as instalações de saúde não são poupadas.

“Todas as ordens de despejo, de deslocamento forçado para tentar expulsar a população do território… é limpeza étnica”, afirmou Damaris Giuliana, que atuou como coordenadora de comunicação de MSF para a Palestina durante três meses, baseada em Jerusalém. “Há padrões de genocídio, de intencionalidade”, disse ela. “Quando você bombardeia os hospitais, na verdade não quer que as pessoas sejam atendidas. Quando você proíbe a entrada de alimentos, você está usando o alimento como arma de guerra. Você está minando todas as possibilidades de vida.”

Todos os profissionais de MSF enfatizaram a enorme resiliência da equipe local. A maioria das pessoas que trabalha nos projetos é de Gaza e não tem possibilidade de deixar o território. Quase todos perderam amigos e parentes na guerra, tiveram suas casas destruídas, já tiveram que se deslocar várias vezes devido às ordens de evacuação israelenses e enfrentam desafios diários para conseguir levar água e comida às suas famílias.

“Mesmo diante de todas as adversidades, como falta de alimento e abrigo, eu via o quanto eles tinham compromisso com o trabalho”, afirmou Ruth. “Eles chegavam no horário e estavam sempre limpos e bem vestidos, e eu não entendia como, porque o pó estava por toda parte”, lembrou.

Por vezes, os profissionais locais de MSF e suas famílias são também vítimas dos ataques e atendidos nas próprias instalações de saúde onde atuam. “A casa de um de nossos funcionários foi bombardeada e ele e toda a família foram atendidos no próprio hospital”, contou Paulo Reis. Ele também relatou que muitos profissionais optam por não consumir as refeições oferecidas no local de trabalho e as levam para compartilhar. “É uma refeição a menos que eles têm que arcar, e significa uma refeição a mais para a família.”

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