Pessoas em trânsito: relatos de sobrevivência na Líbia

Exposição lançada por MSF reúne 400 testemunhos e ilustrações que contam histórias de migração, sobrevivência e resiliência

O Mar Mediterrâneo Central é uma das rotas migratórias mais mortais do mundo . Só em 2024, 1.692 pessoas morreram ou desapareceram ao tentar atravessá-la. Muitas delas já tinham sofrido meses ou anos de violência, abusos e detenções arbitrárias na Líbia, país que criminaliza a migração irregular. As histórias de 400 desses sobreviventes foram reunidas por Médicos Sem Fronteiras (MSF) para o projeto Pessoas em Trânsito, e são acompanhadas de retratos ilustrados por quatro artistas – eles também refugiados.

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As ilustrações se inspiraram nos testemunhos coletados ao longo de uma década por MSF. Elas oferecem um rosto a cada história, dão vida às estatísticas sem expor os indivíduos que sofreram abusos físicos, sequestros ou violência sexual durante a busca por refúgio. E prestam uma homenagem à sua resiliência.

Conheça algumas dessas histórias:

Ilustração de @Souad Kokash
Ilustração de @Souad Kokash

Fui violentada diariamente por 20 homens. Quase morri.”

– Mulher de 32 anos, do Marrocos, em depoimento no navio de busca e resgate de MSF, em 2017

 

 

 

“Me mudei para a Líbia em 2009. Minha irmã na cidade de Zawiya me ajudou a encontrar uma casa e um emprego. Trabalhei como empregada doméstica por quatro anos, depois aceitei um emprego em um bar.

Em 2013, uma gangue me sequestrou. Durante a semana seguinte, fui violentada diariamente por 20 homens. Quase morri. Depois, eles me jogaram na rua. Fiquei em casa por sete meses, sem ver ninguém, exceto minha irmã.
No dia em que decidi sair novamente, fui sequestrada por outra gangue. Eles me levaram para uma fazenda, onde novamente fui violentada todos os dias por vários homens antes de me deixarem na rua.
Em 2015, me casei com um homem. No início, ele era bom, mas quando engravidei, me bateu na barriga até eu perder o bebê. No mês passado, descobri que estava grávida novamente, por isso fugi e me escondi na casa de uma amiga.”

Ilustração de @Souad Kokash

Tentei fugir, mas eles me trouxeram de volta e me espancaram violentamente.”

– Mulher de 18 anos, da Nigéria, em depoimento coletado no navio de busca e resgate de MSF, em 2016

 

 

“Meu pai estava me pressionando para eu casar com um homem a quem ele devia dinheiro, mas minha mãe se recusou, então meu pai disse que eu tinha que ir embora.

Fui para a cidade de Benin com uns amigos. Conhecemos um homem que disse que nos levaria para a Europa para trabalhar por um bom salário. Mas, na Líbia, ele nos levou para um bordel. Me recusei a trabalhar lá, então eles me fizeram passar fome e me espancaram todos os dias. Acabei cedendo. No início, sangrei muito e precisei de tratamento. Eles me disseram que adicionariam o custo do tratamento ao que alegavam que eu lhes devia.

Uma vez tentei fugir, mas eles me trouxeram de volta e me espancaram violentamente. Várias vezes fui sequestrada por homens que me espancavam com armas e me violentavam. Finalmente consegui fugir, e um homem me ajudou – ele me levou até a cidade de Subratha e pagou para eu atravessar a fronteira para a Europa.”

Ilustração de @Tawab Safi

Me mantiveram trancado em um quarto por duas semanas, com pouca comida e água. Minha mente ficou afetada.”

– Homem de 35 anos, de Bangladesh, em depoimento coletado na Líbia, em 2017

 

 

 

“Um intermediário me convenceu a ir para a Líbia para trabalhar – ele disse que a economia estava em alta. Ele pediu 800 mil takas (cerca de 36 mil reais), mas não tínhamos tanto dinheiro, então ele aceitou 200 mil takas (cerca de 9 mil reais).

Quando cheguei a Trípoli, capital da Líbia, alguns líbios me levaram junto com outras 11 pessoas para uma casa, em um carro com vidros escuros. Me obrigaram a pedir à minha família que desse dinheiro ao intermediário. Pensei que me dariam um emprego, mas não tinham nenhum emprego para mim.

Depois, fui parado pela polícia e espancado – me roubaram dinheiro e o telefone.

Finalmente, conheci um homem de Bangladesh que me ajudou a conseguir um barco. Ele me entregou a algumas pessoas que me mantiveram trancado em um quarto por duas semanas, com pouca comida e água, antes de me levarem para o barco. Minha mente ficou afetada.”

Ilustração de @Tawab Safi

Éramos 400 pessoas dormindo em um espaço com capacidade para apenas 50.”

Adolescente de 16 anos, da Eritreia, em testemunho coletado na Líbia, em 2021

 

 

“Cheguei à Líbia em fevereiro passado e fui detido na cidade de Bani Walid até que me transferiram para o centro de detenção Ghut Shaal, em Trípoli – o pior lugar em que já estive. Éramos 400 pessoas dormindo em um espaço com capacidade para apenas 50. Não havia janelas, e as pessoas desmaiavam sempre que os guardas abriam a porta.

A comida era horrível, e achávamos que eles estavam colocando remédios para dormir nela. Mas o pior eram os detentos que trabalhavam com os guardas. Eles costumavam nos torturar e contar aos guardas tudo o que acontecia nas celas, como quando tentamos cavar a parede com uma colher.

Quando disseram que iam transferir os sudaneses, fingi ser um deles. Fugimos do novo centro de detenção e corremos para salvar nossas vidas. Desde então, estou aqui, sem trabalho, sem renda e sem comida.”

Ilustração de @Barly Tshibanda

Tentaram nos forçar à prostituição. Quando recusávamos, nos batiam.”

Mulher de 27 anos, da Nigéria, em depoimento coletado no barco de busca e resgate de MSF, em 2016

 

 

 

“Fui embora porque as pessoas da minha comunidade queriam fazer mutilação genital na minha filha. Nós nos escondemos com minha amiga Ella em outra comunidade. Por um tempo, tudo correu bem. Nós duas trabalhávamos – eu como cabeleireira e Ella em um banco. Então, o tio de Ella decidiu casá-la com um amigo mais velho dele. Eles a trancaram até conseguirem organizar o casamento.

Em uma noite, fugimos. Ouvimos dizer que havia trabalho na Líbia, mas acabamos em uma armadilha. Fomos trancadas em uma casa. Tentaram nos forçar à prostituição. Quando recusávamos, nos batiam. Uma noite, nos deixaram ir. Estávamos em uma grande multidão, sendo conduzidas para o mar. Pensei que iriam nos matar. Em vez disso, nos colocaram em um barco de borracha. Ninguém nos perguntou se queríamos ir. Não escolhemos vir, mas não podemos voltar.”

Ilustração de @Barly Tshibanda

Fui estuprada por sete homens. Fiquei dois meses no hospital.”

– Mulher de 28 anos, da Nigéria, em depoimento coletado no barco de busca e resgate de MSF, 2016

 

 

 

“Nunca vou me casar. Não quero nada romântico com homens, porque todas as minhas experiências foram ruins. Perdi minha virgindade de forma traumática e fui estuprada quando era adolescente – e isso foi só o começo.

Recusei minha vaga na universidade para estudar medicina depois que o namorado da minha irmã me prometeu que eu poderia ganhar dinheiro na Líbia. Quando cheguei lá, fiquei chocada ao descobrir que ele esperava que eu trabalhasse como prostituta. Quando recusei, ele me deixou sem comer e me espancou com um cinto de couro.

Por fim, cedi e fui forçada a atender às vontades de seus muitos clientes. Um dia, fui estuprada por sete homens que vieram em busca de vingança, depois que ele atirou em alguém. Fiquei dois meses no hospital. Uma amiga cuidou de mim até eu recuperar a saúde. Depois de várias tentativas, embarquei em um barco para a Europa.”

Ilustração de @Ngadi Smart

Agora, quero pedir asilo e, com sorte, trazer minha família para se juntar a mim.”

– Homem de 55 anos, do Paquistão, em depoimento coletado no barco de busca e resgate de MSF, em 2017

 

 

“Estava trabalhando para um programa de imunização da ONU, administrando vacinas contra a poliomielite em crianças nas montanhas próximas ao Afeganistão, mas as pessoas ameaçaram matar minha família porque achavam que o programa estava tentando esterilizar seus filhos.

Decidi partir para acabar com as ameaças e voei para Trípoli. Comecei a trabalhar como operário para sustentar minha família, mas em determinado momento fui sequestrado e todo o meu dinheiro foi roubado.

Quando estávamos no barco, a Guarda Costeira da Líbia apareceu. Dois guardas saltaram para dentro do barco com armas, levaram nosso dinheiro e nossos telefones, nos levaram até o limite das águas territoriais da Líbia e nos deixaram. Depois, outro barco apareceu e levou o nosso motor.

Agora, quero pedir asilo e, com sorte, trazer minha família para se juntar a mim, pois a situação no Paquistão é difícil.”

Ilustração de @Ngadi Smart

Nos levaram para uma casa, nos amarraram com as pernas abertas e nos violentaram.”

– Mulher de 25 anos, da Costa do Marfim, em depoimento coletado no barco de busca e resgate de MSF, em 2017

 

 

“Fui mantida em uma cabana com outras oito mulheres. À noite, quando não havia guardas, saíamos para procurar comida – um pedaço de pão na rua ou qualquer outra coisa.

Uma noite, uns homens nos levaram para uma casa, nos amarraram com as pernas abertas e nos violentaram. Eles também nos espancaram. Mesmo depois de me desamarrarem, eu não conseguia andar. Na noite seguinte, eles nos estupraram novamente. Então fugimos e voltamos para a cabana.

Não sei quanto tempo ficamos lá. Uma noite, homens armados nos vendaram e nos levaram para um depósito em Sabratha. No dia seguinte, eles nos espancaram com tubos de borracha. Duas meninas morreram. Às vezes, ficávamos dois ou três dias sem comer. Por fim, fomos levadas para o mar. Entramos em pânico, então eles nos espancaram novamente, mas depois nos colocaram em um barco.

Agora estou grávida, mas o que posso fazer?”

O trabalho de MSF

De 2016 a 2023, MSF prestou assistência médica e humanitária em centros de detenção de Trípoli, incluindo cuidados de saúde gerais, apoio à saúde mental, encaminhamento de casos com risco de morte para centros de saúde especializados e facilitação do acesso a serviços de proteção a pessoas detidas arbitrariamente, muitas vezes em condições violentas e desumanas.

MSF realiza atividades de busca e resgate no Mediterrâneo Central desde 2015 e já resgatou mais de 94 mil pessoas. Em dezembro de 2024, MSF foi forçada a encerrar as operações a bordo de sua embarcação , o Geo Barents, mas continua comprometida em retornar ao Mediterrâneo Central.

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