“O incêndio que atingiu Moria está em curso há anos”

Especialista em assuntos humanitários, Aurélie Ponthieu analisa a situação do campo de refugiados em Lesbos, na Grécia

“O incêndio que atingiu Moria está em curso há anos”

“Comentando sobre os incêndios que destruíram quase completamente o campo de refugiados de Moria, na ilha grega de Lesbos, na semana passada, o porta-voz do governo local, Stelios Petsas, disse em uma coletiva de imprensa: “Eles pensaram que se colocassem fogo em Moria, sairiam da ilha indiscriminadamente. O que quer que aqueles que provocaram os incêndios tenham em mente, eles podem esquecer.”

As causas para os incêndios terem começado ainda não foram confirmadas, mas o que o sr. Petsas sugere, que os refugiados atearam fogo no campo para escapar dele, fornece uma ilustração perfeita do sistema desumano ainda em vigor em Lesbos. Quando a única maneira de se libertar é queimar sua casa, algo pode estar muito errado e deve-se questionar a própria natureza desse lugar chamado “Moria”.

Essas 12 mil pessoas já estavam desabrigadas. As pessoas afetadas pelo incêndio não tinham casas ou lares, mas contêineres, barracas e tendas, que dividiam com outros solicitantes de asilo nas condições mais desesperadoras. Agora, elas foram deixadas para se defenderem sozinhas na rua, nas cinzas de um acampamento que odeiam, onde foram maltratadas e para onde provavelmente receberão ordens para voltar.

Esta não é a primeira vez que o campo de Moria foi atingido pelas chamas. Em setembro de 2016, um incêndio destruiu o acampamento. Pelo menos 20 pessoas sofreram queimaduras leves, enquanto uma mulher e uma criança com queimaduras graves foram evacuadas para um hospital em Atenas. Milhares ficaram sem abrigo. Desde então, outros incêndios isolados resultaram na morte de três pessoas.

O último incêndio, no entanto, não começou na terça-feira. Ele está em curso há anos. Foi alimentado pela agenda de controle e dissuasão da migração da União Europeia e a dor que esta agenda impõe, por restrições aos movimentos das pessoas, pelas filas desumanizantes de distribuição de alimentos, pelos procedimentos de asilo injustos e em constante mudança, por uma rotina de humilhação, xenofobia e violência. Pelas esperanças esmagadas das pessoas por um futuro melhor – ou pelo menos por alguma dignidade na Europa.

O desespero dos moradores de Moria tem aumentado desde que o acordo UE-Turquia foi adotado há quatro anos. Os residentes do acampamento vêm e vão. Incêndios e mortes deixaram o “acordo” rotulado como um sucesso pelos líderes europeus. Depois de meses – e às vezes anos – eles encontram uma saída: para o continente grego, ou de volta à Turquia, ou de volta ao seu país de origem. Eles deixam Lesbos doentes, exaustos, muitas vezes com doenças mentais e às vezes fisicamente feridos. Em seguida, vêm novos refugiados para tomar seu lugar e serem esmagados mais uma vez pela máquina. Os incêndios não são acidentes em Moria, são produtos da máquina de dissuasão da migração.

Quando a pandemia de COVID-19 foi declarada na Grécia em março, as equipes de MSF ficaram preocupadas que um surto em Moria pudesse se tornar um desastre de saúde pública. Nessas condições de superlotação, com acesso limitado a água e sabão, temíamos que o vírus pudesse se espalhar como um incêndio. Centenas de pessoas no acampamento estavam sob risco médico de adoecer gravemente, caso contraíssem o novo coronavírus.

Junto com outras organizações, pedimos às autoridades da UE e da Grécia que evacuassem as pessoas em maior risco e descongestionassem o campo, que na época estava lotado com 19 mil pessoas. Centenas foram transferidas preventivamente para fora de Moria. Mesmo assim, 200 pessoas nas categorias de risco para COVID-19 ainda moravam lá no momento do incêndio.

Nossa equipe, juntamente com as autoridades de saúde pública, montou um centro de triagem e isolamento dedicado para garantir que os primeiros casos de COVID-19 fossem detectados rapidamente. De maio a julho, tratamos e isolamos com segurança 55 pacientes com suspeita de coronavírus.

Ainda assim, em julho, fomos forçados a fechar o centro pelas autoridades locais, que citaram infrações administrativas relacionadas ao planejamento urbano. O fechamento do centro deixou os residentes de Moria sem resposta específica contra a COVID-19 e o sistema de saúde local sem capacidade de isolamento em caso de surto.

Desde março, os toques de recolher relacionados à doença e o aumento das restrições aos movimentos de solicitantes de asilo em Moria foram estendidos sete vezes por um período de mais de 150 dias. Quando o bloqueio de Lesbos foi suspenso e o restante da população da ilha desfrutou de sua nova liberdade, os residentes de Moria foram continuamente privados dessa liberdade.

Em vez disso, seu confinamento foi tornado ainda mais rígido do que antes, enquanto nada foi feito para melhorar suas condições de vida ou estabelecer uma resposta abrangente à COVID-19. Os residentes de Moria não tiveram chance de seguir medidas básicas de prevenção, como distanciamento físico ou lavagem das mãos. A mensagem que lhes foi enviada foi clara: sua saúde era menos importante do que manter a política de dissuasão da migração em vigor.

Para piorar a situação, o governo grego usou abertamente a detecção do primeiro caso de COVID-19 em Moria, em agosto, para justificar novas restrições aos solicitantes de asilo nas ilhas e para promover planos para a criação de centros de detenção.

As medidas de saúde pública, quando restringem as liberdades individuais, devem ser proporcionais, necessárias e legais. Elas também devem ser baseadas em evidências científicas. Não há evidências de que a detenção e a contenção impeçam os solicitantes de asilo de deixar seus países de origem. As evidências, entretanto, mostram claramente que a quarentena é ineficaz e até mesmo contraproducente em condições insalubres e de superlotação.

Nenhum surto pode ser controlado com sucesso sem a confiança das comunidades. Sabemos disso às custas de nossa experiência ao trabalharmos em outros surtos de doenças infecciosas. Em fevereiro do ano passado, a resposta governamental ao Ebola na República Democrática do Congo foi politizada e recebeu hostilidades da população local. Como resultado, nossos centros de tratamento em Katwa e Butembo foram atacados, com o centro de Katwa sendo totalmente queimado.

 Há semanas que pedimos as autoridades de saúde e migração gregas que definam um plano adequado de resposta para COVID19 em Moria: um plano baseado no controle de casos, que conte com a colaboração das pessoas e ofereça dignidade aos doentes e àqueles que podem contaminar outras pessoas. As autoridades gregas não implementaram tal resposta, enquanto a UE faz vista grossa e não se movimenta para resolver a situação.

As cinzas de Moria são testemunhas do desespero fabricado por um sistema de dissuasão, desumanização e negligência patrocinado pelo estado. Um sistema semelhante de detenção desumana não deve renascer dessas cinzas, ou sempre haverá caos e desespero nas fronteiras da UE.”

 

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