Hospital apoiado por MSF é o único com maternidade no sul de Cartum, no Sudão

Muitas pessoas precisam cruzar as linhas de frente do conflito para chegar até a instalação.

©Dalila Mahdawi/MSF

No Sudão, onde os conflitos já entraram em seu quinto mês, Médicos Sem Fronteiras (MSF) tem apoiado o Hospital Turco em Cartum, capital do país, desde maio. Em duas ocasiões, houve risco de MSF precisar encerrar o apoio ao hospital, mas foi possível manter e até expandir nossa atuação – apesar dos imensos desafios, que incluem a falta contínua de vistos para profissionais.

Atualmente, cerca de 100 pessoas chegam ao hospital para tratamento todos os dias; em média, 40 pacientes são atendidos na sala de emergência. Mego Terzian, coordenador-geral de MSF na região, apresenta uma atualização sobre a situação no local.

Cerca de 100 pacientes por dia, principalmente mulheres e crianças

Nas últimas semanas, a maioria dos nossos pacientes tem sido crianças e mulheres grávidas e, embora nosso foco quando os confrontos se intensificam seja tratar os feridos de guerra, o Hospital Turco é o único hospital disponível na região para fornecer cuidados de saúde especializados a mulheres grávidas e crianças.

MSF também oferece cuidados de saúde materna na parte nordeste de Cartum e em Omdurman. Porém, no sul, o Hospital Turco é o único com departamento pediátrico e maternidade em funcionamento.

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Estamos instalados no bairro de Al Kalakla, mas temos muitos pacientes vindos de outras áreas, e muitas pessoas cruzam as linhas de frente do conflito para chegar até nós. Recentemente, a cerca de 5 km a sudeste de onde estamos localizados, ocorreu um dos confrontos mais graves desde o início da onda de violência, com ataques aéreos e bombardeios de artilharia pesada em torno da base do exército do Corpo Blindado.

Nos últimos quatro meses, pelo menos 17 grandes ofensivas foram organizadas para tentar assumir o controle dessa base, e enfrentamos muitas vezes chegadas de vítimas em massa. A situação é muito perigosa para quem mora nas proximidades: a vida é muito difícil, inclusive no hospital, mas todos na equipe estão conscientes de que nossa presença é crucial para a saúde das pessoas aqui.

O acesso aos cuidados de saúde continua a ser o maior desafio

O maior desafio em termos de prestação de cuidados de saúde em Cartum continua a ser o acesso a serviços médicos. Há extrema insegurança, e as opções de transporte são quase inexistentes.

Para os pacientes, é muito difícil chegar ao hospital. Não há ambulâncias. Qualquer veículo que sai às ruas é comandado pelos grupos armados, que controlam as vias externas. Até mesmo veículos de MSF foram roubados.

Enfrentamos vários problemas de segurança nos últimos meses. Atualmente, no Hospital Turco, MSF tem apenas um veículo alugado com um corajoso motorista que consegue trazer medicamentos, bem como alimentos e água para nossos pacientes e profissionais.

No entanto, essa não é uma tarefa fácil. Há vários postos de controle nas estradas e, em cada um, precisamos explicar nossa presença, o tipo de assistência que estamos prestando e por que é crucial que possamos continuar o transporte de suprimentos até o hospital.

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Como não há ambulâncias, os pacientes precisam encontrar um jeito para chegar às instalações, e há pouquíssimas opções disponíveis. Os únicos veículos que são capazes de se mover livremente são os usados pelas pessoas que estão envolvidas nos conflitos.

Além disso, há uma escassez de combustível em toda a cidade. Vemos dezenas de veículos que foram abandonados na beira da estrada porque ficaram sem combustível e se tornaram inúteis após terem sido roubados. Então as pessoas começaram a usar carroças de madeira conduzidas por animais – ou simplesmente vão a pé. Alguns pacientes me disseram que caminharam até 15 km e cruzaram a linha de frente do conflito para chegar até nós.

O sistema de saúde entrou quase completamente em colapso em Cartum, e não há atividades básicas de saúde.”
Mego Terzian, coordenador-geral de MSF.

A saúde materna e o colapso do sistema de saúde de Cartum

Em média, ocorrem oito partos por dia em nossa maternidade, sendo três cesáreas em média. A maioria das mulheres que chegam até a instalação está em boas condições de saúde, mas algumas têm anemia.

Ao realizar cesarianas, um ponto de dificuldade é a falta de sangue para transfusão. O sangue precisa ser armazenado a uma temperatura muito específica, o que é um grande desafio por causa da escassez contínua de combustível e eletricidade na cidade.

Trazer novos suprimentos médicos tornou-se cada vez mais desafiador porque as permissões de viagem não estão mais sendo emitidas regularmente. Isso está impedindo que nossas equipes entrem em Cartum para reabastecer o hospital.

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O sistema de saúde entrou quase completamente em colapso em Cartum e não há atividades médicas básicas, com exceção de um centro de saúde que reabriu em nosso bairro e um grupo de voluntários sudaneses que está tentando fornecer serviços de saúde em uma mesquita próxima.

A maioria das pessoas com quem falei pensa que a guerra continuará por muitos meses – até anos.”
Mego Terzian, coordenador-geral de MSF na região.

Risco de doenças mortais

Devido à falta de vacinas, estamos preocupados que haja um surto de sarampo ou meningite nas próximas semanas. O cólera também é um risco muito real devido à falta de água potável e saneamento.

Felizmente, de certa forma, não há grandes concentrações de pessoas em Cartum como havia antes da guerra, o que pode reduzir um pouco o risco, mas a realidade é que não há atividades de vacinação nem água própria para consumo ou potável disponível. Também há falta de saneamento e de condições adequadas de higiene.

Notamos que o número de crianças que chegam com diarreia e desidratação aumentou, o que não era um problema comum antes da guerra, mas surgiu devido à má qualidade da água.

Além disso, apesar do clima quente, há um número significativo de crianças com pneumonia. As causas provavelmente são a falta de vacinas, bem como as más condições de saneamento. Com a chegada da estação chuvosa, consideramos também a possibilidade de um surto de malária nas próximas semanas.

Temos um número preocupante de crianças internadas com desnutrição grave. Algumas estão assim por falta de comida, outras porque contraem doenças e, como resultado, ficam com desnutrição.

Quando as crianças têm desnutrição junto com outras doenças, como malária, diarreia com desidratação e infecções respiratórias agudas, como pneumonia, sua condição pode se tornar crítica. Já tratamos alguns casos de malária grave, e entre os recém-nascidos temos um número significativo com sepse.

Embora tenhamos leitos suficientes para tratar o número de pacientes no momento, quando o período de alta nos casos de malária começar – e se o número de crianças que precisam de tratamento para desnutrição grave aumentar –, não teremos capacidade de atender às necessidades.

Doenças crônicas e o que vem em seguida

Somos uma das poucas estruturas de saúde que fornecem assistência a pacientes com doenças crônicas, como diabetes, asma e doenças cardiovasculares. Temos muitos pacientes com idades avançadas chegando, especialmente com complicações.

Às vezes, vemos pacientes com diabetes já em idade avançada que chegam em coma por não terem conseguido obter insulina por causa dos conflitos. Por conta da falta de acesso a tratamento na cidade, ficam muito doentes e chegam até nós em condições de saúde críticas.

Uma coisa positiva é que, em Cartum, a taxa de mortalidade no hospital é inferior a 2%, o que é um grande sucesso para a equipe médica e logística, considerando as condições em que estão trabalhando.

Apesar dos problemas que enfrentam todos os dias – a falta de eletricidade, água e oxigênio, e às vezes a escassez de insumos específicos para anestesia e transfusões de sangue – conseguimos manter a equipe lá e continuar a fornecer cuidados de saúde de emergência para as pessoas.

No entanto, as condições em Cartum fazem com que a população fique muito desesperançosa. A maioria das pessoas com quem falei pensa que a guerra continuará por muitos meses – até anos.

 

MSF tem respondido à crise no Sudão desde que começou, em abril, e atualmente está trabalhando em 10 estados: Cartum, Al-Jazeera, Darfur Ocidental, Darfur do Norte, Darfur Central, Darfur do Sul, Al-Gedaref, Nilo Azul, Nilo Branco e Rio Nilo.

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