Histórias de Refúgio

Ação para o Dia Mundial do Refugiado 2021 relata a trajetória de 4 venezuelanos que buscaram o Brasil como refúgio para sobreviver

Histórias de Refúgio

Neste Dia Mundial do Refugiado, queremos contar as histórias que acompanhamos cotidianamente. Para isso, pedimos que alguns migrantes venezuelanos que estão nesse momento em nosso projeto em Roraima contassem suas trajetórias de refúgio e, a partir disso, trouxemos para vocês como histórias e ilustrações inspiradas nesses relatos.

Noris – por Fernanda Rodrigues

Noris foi a única de sua família a conseguir cruzar a fronteira e sair da Venezuela antes que a pandemia começasse. Ela chegou no Brasil em janeiro do ano passado em busca de condições melhores de vida, mas sem esquecer de seus entes queridos.  
 
Parte do seu objetivo ao vir para o Brasil era ajudar seus pais, irmão e filho a terem uma vida melhor. Graduada em Educação Integral Pedagógica, procurou emprego em Boa Vista e sentiu as dificuldades de ser uma refugiada. Tentou com afinco todas as possibilidades que apareciam.  
 
A pandemia veio e Noris se sentiu impotente, incapaz de fazer qualquer coisa, afinal, ela não podia ir à Venezuela e seus parentes não podiam vir ao Brasil. O objetivo de apoiar financeiramente sua família também foi ficando cada vez mais desafiador. Nas ligações que faziam, eles afirmavam que não tinham nada para comer e ela não tinha meios para ajudar.  
 
Esse foi um momento verdadeiramente desesperador para ela. Sem sua família ao seu lado, Noris começou a trabalhar na comunidade de refugiados local como voluntária, onde criou novos laços. Rapidamente se tornou líder de sua comunidade indígena, se tornando cacique por um curto período de tempo.  
 
Foi nesse momento que surgiu a oportunidade de Noris começar a trabalhar em MSF. Hoje, ela é Mediadora Cultural de MSF e trabalha servindo sua comunidade, seu povo venezuelano, seu povo indígena e sente muito orgulho do que faz. Noris trabalha com saúde, mas em contato direto com a sua cultura e o seu povo, o que a deixa um pouco mais perto de casa.

Alejandra* –  por Maria Júlia Rêgo

Alejandra veio sozinha da Venezuela para o Brasil em 2019. Sua família já havia saído do país antes dela: seus irmãos migraram pela América Latina e seus primos foram para a Europa. Sua última companhia em solo venezuelano, sua avó, faleceu no último ano em que passou em sua cidade natal.
 
Em meio à solidão, Alejandra se deparava com muitas questões de saúde. Aos 18 anos, foi diagnosticada com uma síndrome no sistema gástrico, o que demanda tratamento pelo resto da vida. Além disso, naquele ano, ela estava com dores muito fortes nas articulações, sem diagnóstico. Em sua cidade, não havia a possibilidade de realizar os exames necessários nos hospitais pela falta de infraestrutura. À medida que a crise foi piorando, os médicos locais que a tratavam foram saindo da Venezuela. As instituições de saúde não pareciam ter médicos ou suprimentos, só se viam famílias e enfermos por lá: “Você tinha que levar até o seu próprio soro porque tudo estava em falta”, nos relata.  
 
Seu desafio naquele momento foi conseguir o dinheiro necessário para realizar exames e tratamentos. Na Venezuela, Alejandra trabalhava como professora numa Universidade Pública. Durante a crise, os salários começaram a atrasar cada vez mais, e a inflação a aumentar. Com o que ganhava em um mês, não conseguia comprar nem um quilo de frango tampouco cuidar de sua frágil saúde.  
 
Veio à Boa Vista para realizar uma pesquisa acadêmica com alguns conhecidos e, assim, juntar algum dinheiro para voltar para o seu país e realizar os procedimentos médicos. Quando chegou, pensou, como muitos outros, que iria regressar para a casa rápido. Não só não conseguiu voltar em 2 meses como havia planejado, como já está há 2 anos em Boa Vista.  
 
Alejandra sentiu muito ao chegar ao Brasil e ver tantos venezuelanos morando em abrigos, passando reais necessidades de fome, e famílias inteiras morando nas ruas. A realidade que já acompanhava nas redes sociais e nos jornais se mostrou muito mais dura e cruel. Por esse choque emocional, ela não queria ficar no país. Esse definitivamente não era o seu objetivo, mas aos poucos foi aceitando a ideia quando as fronteiras fecharam.  
 
Por conhecidos, Alejandra soube do Sistema Único de Saúde Brasileiro, conseguiu se tratar por aqui e as dores finalmente cessaram. Na mesma época, ela foi contratada por MSF e, em meio à sua equipe, experimentou algo que não vivia há muito tempo: a sensação de apoio. Ali, ela fez família. Hoje se sente mais tranquila por ter conseguido cuidar de sua saúde e se emociona pelos laços criados onde menos esperava.  

*Nome fictício.

María Gabriela* – por Júlia Lima

“A vida estava muito difícil, não se conseguia cobrir os gastos básicos na Venezuela”, nos relatou María Gabriela, que tem quatro filhas que não estavam conseguindo mais estudar ou ter acesso a uma estrutura mínima para viver em seu país de origem.  
 
María resolveu vir ao Brasil depois de um processo longo e doloroso de muitos questionamentos internos. À época, ela estava casada e o ex-marido morava em Roraima, onde já havia conseguido trabalho. Depois de várias viagens sozinha à Boa Vista, entendeu que precisava sair da Venezuela com suas filhas. Só conseguiu tomar coragem quando sentiu que tudo ficou realmente difícil por lá. Sair de seu país e deixar suas raízes para trás não foi fácil. Isso aconteceu no final de 2018.  
 
Após tomar a decisão de sair da Venezuela, María ainda teve que lidar com o medo. Sua filha mais nova não tinha documentos venezuelanos ainda, apenas um passaporte colombiano por nascimento. Os documentos venezuelanos não foram liberados pelo Governo Nacional da Venezuela, apesar de a criança ser filha de uma venezuelana e morar lá. Sair da Venezuela e chegar em um país estranho com uma criança sem documento a deixou com muito medo. O trajeto foi repleto de angústia e temor. Aos seus próprios pesadelos, somavam-se as vozes de terceiros, que afirmavam que a menina não conseguiria entrar no país. Tudo isso, adicionado aos temores de ter que trabalhar e viver em um país onde não conhecia o idioma nem ninguém.  
 
Passada a fronteira, sua chegada foi abrupta. Já solteira e sem o apoio do ex-marido, que já não morava mais em Boa Vista, María se viu sozinha com suas 4 filhas.  
 
O primeiro ano foi muito difícil. Apesar de ter conseguido um teto para a sua família, o trabalho ainda era pouco. Apenas conseguia uma diária ou outra como faxineira para sustentar a todas. Segundo ela, tudo mudou quando MSF chegou na cidade. Hoje, empregada, se sente mais tranquila e estruturada. Agradecida por MSF e pelo Brasil por terem abraçado sua família.

*Nome fictício.

Alexander – por Paula Cruz

Alex é cozinheiro no projeto de MSF em Roraima. “Trabalhei minha vida inteira em restaurantes e hotéis até que consegui abrir meu próprio negócio”, complementa.  

Nesse momento de realização pessoal para Alex, a crise começou na Venezuela. O papel moeda ficou extremamente desvalorizado e parou de circular entre a população. As máquinas de cartão ficaram muito difíceis de conseguir, num momento em que não havia outra forma de realizar pagamentos. Alex teve que fechar seu negócio por não ter como receber.  
 

Ficou muito magro porque não conseguiu trabalho e não tinha o que comer. “Eu sempre fui gordinho”, nos contou. De 126 quilos, Alex chegou a pesar 62 quilos. Ninguém o reconhecia na rua.  

Na Venezuela, sua casa tem um grande quintal repleto de árvores e plantas. Em seu lar, Alex cultivava abacaxi, limão, banana, abóbora e outros alimentos. Foi assim que ele e sua família conseguiram se alimentar no ano em que ficou desempregado.

Após esse duro período, ele conseguiu um emprego como chefe de cozinha de um famoso hotel. Mesmo ganhando entre 7 e 10 salários mínimos, a inflação exorbitante impedia que isso fosse o suficiente para cobrir os gastos básicos de sua família. Foi nesse momento que ele decidiu imigrar. Com o salário de um mês, sua família só conseguia se alimentar por uma semana.  

Alex chegou sozinho e sem ter onde ficar em Boa Vista. Se deparou com uma situação de deriva que não esperava. Achou que um centro de acolhida para refugiados o receberia nesse processo de chegada, mas não foi o que aconteceu. Chegou a dormir na rua e foi atacado muitas vezes durante essas noites solitárias. Algumas pessoas passavam de madrugada jogando garrafas nos venezuelanos que estavam dormindo nas ruas da cidade.

“E se eu não conseguir trabalho?”, era uma pergunta que ficava martelando em sua cabeça. “O que falarei para minha família?”

Aos poucos, Alex foi criando laços e conseguiu se hospedar na casa de alguns conhecidos por algumas noites, até que uma senhora brasileira o acolheu. Além de teto, ela emprestou sua cozinha para o chefe, que passou a assar pães e pizzas para vender nas ruas da cidade.   

Quando conseguiu o trabalho em MSF, enviou todo o seu primeiro salário para sua família para que eles pudessem vir também. E ele conseguiu: sua mulher e seus dois filhos vieram encontrá-lo.  

Hoje, se sente com mais segurança. As metas que tinha ao vir, conseguiu cumprir. Passou por muitas coisas ruins, mas está contente com a vida que leva agora. Atualmente, seu maior desejo é que que seus filhos cresçam em um ambiente seguro, estudem e sejam felizes. Que não passem pela fome que conseguiram deixar para trás na Venezuela e que tenham um futuro pela frente.
 

 

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