Febre de Marburg: o dia-a-dia de uma profissional de MSF em Angola

Zoe Young é uma das profissionais de MSF que está em Uige, Angola, ajudando no controle da epidemia de Marburg. Ela fez um diário contando como é o dia-a-dia dos profissionais de MSF numa cidade onde a cada dia há uma triste história

Zoe Young é especialista em água e saneamento e está trabalhando para MSF no controle da epidemia de Marburg em Angola, ajudando na logística da resposta humanitária da organização. MSF vêm criando unidades de isolamento para receber as pessoas infectadas e Zoe é uma das pessoas que está ajudando nesta tarefa. Ela está em Uige, epicentro da epidemia, e conta como está sendo o seu dia-a-dia.

Domingo, 10 de abril.

Hoje eu fui à unidade de isolamento do hospital de Uige pela primeira vez. Há duas áreas: a área de alto risco e a de baixo risco. Na área de baixo risco eu coloquei roupas adequadas, botas e luvas. Depois botei as roupas de proteção. Nem um milímetro da minha pele pode ser visto, apenas os meus olhos, embora eu estivesse usando óculos protetores também.

Entramos na área de alto risco onde os pacientes são mantidos. Três pessoas morreram ontem e a única paciente que ainda estava viva na unidade tinha acabado de falecer. Todos estavam muito tristes, já que tínhamos a esperança de que ela sobreviveria. Precisávamos colocá-la numa sacola mortuária para que ela pudesse ser enterrada. Essas sacolas são usadas porque, mesmo após a morte, as pessoas ainda podem passar o vírus. Nós entramos lá com um spray de cloro. O vírus é bastante sensível a cloro e a sabão. Colocamos ela dentro da sacola mortuária e nos certificamos de que ela estava OK para que a família dela pudesse olhar para ela. Ela estava deitada de lado e parecia que estava dormindo.

Como alguns casos estavam relacionados à maternidade, fomos em seguida para lá para jogar cloro em tudo: chão, paredes, camas, e até na mesa da diretoria. Estávamos todos vestindo as roupas protetoras.

Estamos preocupados porque ninguém quer vir mais ao hospital por medo de contaminação. Por isso, as pessoas doentes acabam ficando em casa sendo cuidadas pelos parentes mais próximos. A maioria das pessoas na unidade de isolamento é mulher. Talvez por serem elas as que cuidavam dos doentes da família antes de eles morrerem.

Segunda-feira, 11 de abril.

Hoje à tarde treinamos alguns profissionais locais para trabalharem na desinfecção e no enterro dos corpos. Temos uma equipe que recolhe os corpos, uma equipe que vai ao cemitério com os corpos e uma equipe que vai até a casa das pessoas para desinfetar a área onde o paciente estava.

Primeiro explicamos as tarefas de cada equipe. Não sei como conseguimos convencer as pessoas a fazerem parte da equipe que recolhe os corpos – acho que esta é a prior tarefa. Ter que ir à casa das pessoas recolher o corpo, diante de todos os familiares. Depois fizemos uma demonstração de como as pessoas devem se proteger. No final, todos pareciam ter entendido tudo, e estavam prontos para iniciar o trabalho na manhã seguinte.

No final da tarde recebemos a notícia de que mais dois pacientes estavam chegando e foram acomodados na área de suspeitos.

Estou ficando numa casa com o pessoal de MSF. São 17 pessoas ao todo. Todos dormem no chão, em colchonetes, mas mesmo assim eu estou feliz de ter conseguido um lugar. Não podemos nos tocar, por isso não há beijos de bom dia, ou mesmo apertos de mão. Na entrada há uma torneira com cloro que usamos para lavar as mãos. Todos os pratos e copos são lavados com sabão e depois com cloro.

MSF está enviando mais pessoal para ajudar no controle da epidemia e, quando o restante da equipe chegar – esperamos que amanhã – iremos para Songo, no norte de Uige, onde até o momento há nove casos confirmados.

Quinta-feira, 14 de abril.

Hoje fomos para Songo, uma pequena cidade que fica 45 minutos ao norte de Uige. O hospital tem 100 leitos e está recém pintado de azul e branco. No entanto, quase não há pacientes já que eles têm medo de pegar a doença que eles pensam estar vindo do hospital.

Assim que chegamos, descobrimos que um paciente tinha acabado de falecer, provavelmente de febre de Marburg. Pedimos a um membro da família que viesse conversar conosco para que fizéssemos algumas perguntas sobre os sintomas. Ela era a irmã da mulher que tinha morrido e, embora ela não tivesse tocado no corpo, ela vinha cuidando do filho da irmã e estava preocupada de estar doente. Ela pediu para ser isolada para evitar que alguma outra pessoa pudesse se contaminar.

A médica de MSF, Sophie, e eu passamos horas andando pelo hospital para decidir onde faríamos a unidade de isolamento para colocarmos os pacientes de Songo antes de serem transferidos para Uige.

Na volta, paramos no hospital de Uige para ver como as coisas andavam. Uma equipe estava saindo para buscar um caso suspeito na maternidade. Eles precisavam de alguém para acompanhá-los com uma máquina de spray de cloro, e eu me ofereci para ir.

A paciente estava na maternidade que nós havíamos desinfetado dois dias antes. Ela estava muito quieta. O que não me surpreendeu, já que deve ser horrível ver cinco pessoas vestidas em roupas para proteção vindo na sua direção. Ela estava deitada num pedaço de plástico e foi fácil levantá-la e levá-la para a unidade de isolamento.

Sexta-feira, 15 de abril.

Fiquei sabendo que mulher que tínhamos levado para a unidade de isolamento tinha morrido durante a noite. Estávamos sem nenhum paciente na unidade.

Sábado, 16 de abril.

Logo cedo todos nós tiramos as nossas temperaturas. O primeiro sintoma de Marburg é febre alta, por isso, a partir de agora todos iremos tirar a temperatura todas as manhãs e todas as noites. Também estamos tomando remédios para a profilaxia da malária porque os sintomas são bem parecidos com os da febre de Marburg. Minha mão está despelando e cheira a cloro, já que temos que lavar as mãos todo o tempo com esta solução de cloro.

Quando chegamos a Songo novamente descobrimos que uma mulher havia morrido no hospital durante a noite. O bebê dela esteve no hospital há duas semanas e tinha morrido na semana passada. Sophie queria coletar uma amostra de saliva antes que a equipe de enterro chegasse, para definirmos se ela havia mesmo morrido de Marburg, mas eu estava preocupada com o fato de como iríamos nos desinfetar e onde iríamos colocar todos os materiais utilizados. Eu não queria colocar tudo no carro e voltar para Uige. Foi frustrante não sabermos ao certo se se tratava de mais um caso de Marburg. E decidimos que a equipe de enterro iria voltar na manhã seguinte e que Sophie os acompanharia e faria a coleta da saliva.

Durante a tarde, continuei treinando os nossos “homens-spray” a usarem o cloro e desinfetarem as áreas. Natalie, nossa especialista em logística, queria que o prédio onde fica o escritório de MSF fosse desinfetado, e parecia ser a oportunidade perfeita para dar a eles uma aula prática. A sala que desinfetamos estava ensopada, com água descendo pelas paredes e formando poças no chão. Fiquei bastante satisfeita com o progresso deles e no dia seguinte eu acreditava que eles pudessem terminar o restante sozinhos antes de irem para o trabalho de desinfetar as unidades hospitalares.

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