Diário de Jessica: motocicletas e canoas para chegar às áreas mais remotas da RDC

Nessa segunda parte do seu diário, a enfermeira Jessica Nestrell fala sobre as dificuldades de acessar as comunidades da República Democrática do Congo, onde as equipes de MSF irão vacinar 100 mil crianças contra o sarampo

Infelizmente tem chovido muito aqui em Mbandaka, ultimamente. Ontem a canoa que ia para Basankusu – com todo nosso material – encheu de água e afundou. Era a mesma canoa que havia afundado da outra vez. Portanto, quando descobrimos que a canoa tinha afundado novamente tivemos que pescar as coisas do rio e colocá-las novamente na canoa. Com isso, a partida da canoa foi adiada para a semana que vem.

As coisas parecem um pouco emperradas no momento, já que o material necessário chegará com atraso, e as autoridades locais de saúde só fizeram os pedidos das vacinas há pouco tempo.

Eu terei que retornar para Basankusu na próxima semana. Como o avião de MSF está parado enquanto aguarda manutenção, numa outra cidade, pode ser que eu consiga um lugar no avião de uma outra organização, ou então suba naquela canoa furada e siga para Basankusu, junto com o material.

Lá, espero poder me juntar às equipes que fazem visitas regulares em alguns postos de saúde da região. Esse é o levantamento mais difícil de ser feito, já que a população está vivendo em áreas bastante isoladas, e as estradas, quando existem, estão em péssimas condições.

Logo iniciaremos a campanha de vacinação de fato, mas ainda falta um pouco. Nas últimas duas semanas eu fui a única pessoa das equipes de vacinação acompanhando as equipes móveis de Basankusu durante as visitas de supervisão na região de Djombo, no nordeste do país.

Foi um dia inteiro numa canoa apenas para chegar à parte de terra onde iniciaríamos a viagem. Éramos onze no total, mais seis motocicletas e um monte de bagagem. Pegamos duas grandes canoas – e uma delas era a tal canoa que afundou anteriormente.

Tudo certo dessa vez. Chegamos no final da tarde, com céu escuro, e ainda fomos descarregar o material e subir nas motos até os postos de saúde, onde passaríamos a noite, amontoados na enfermaria.

Rumo à estrada

“Na manhã seguinte, nos dividimos em duas equipes e seguimos caminhos diferentes. Minha equipe ficaria com as motocicletas, enquanto a outra seguiria de canoa até mais adiante. Nos encontraríamos novamente dentro de alguns dias.

Minha equipe é composta por sete pessoas. Nele, uma médica belga, Jean e Bakomeka, dois enfermeiros congoleses, Benjamin, o motorista, a pessoa encarregada da logística, um outro motorista e eu. Em missões como esta é sempre bom que as pessoas exerçam várias funções.

Nosso primeiro destino foi um posto de saúde em Bobambo, 20 quilômetros ao noroeste de Djombo. No dia seguinte deixamos Bobambo em direção ao oeste numa pequena trilha que nos levou em direção a Boso Ngubu. “A ‘mondele’ (como os congoleses chamam as estrangeiras) nunca vai conseguir chegar ao final da estrada”, disseram alguns pescadores que encontramos no caminho. “É melhor vocês voltarem”.

Meu motorista, Benjamin, não parecia muito satisfeito de entrar na selva com uma ‘mondele’. Mas insistimos e seguimos adiante. Cerca de 15 árvores enormes haviam caído no meio da trilha impedindo a passagem. Tivemos que levantar as motocicletas treze vezes, passar por cima dos troncos, para seguir caminho.

Enquanto Benjamin dirigia, eu ia na frente levantando os galhos que impediam a passagem. Cheguei a cair num arbusto cheio de pequenos espinhos que entraram na minha pele. Decidimos que jamais iríamos deixar o posto de saúde sem uma foice.

Para passar pelas mais de dez pontes de madeira, era a mesma coisa. Eu tinha que descer da motocicleta, levantar a parte da frente, correr para trás, para levantar a traseira da moto enquanto Benjamin passava. Mas quando chegamos ao posto de saúde de Boso Ngubu, percebemos que todo o esforço valeu a pena. Apesar do medo e da aventura, tínhamos nos divertido bastante. De lá, pegamos uma trilha mais a frente para checar as condições do rio.

Infelizmente, o caminho era muito difícil e não tínhamos como usá-lo quando voltássemos para a campanha de vacinação. Ou teríamos que limpá-lo, ou usar o rio para fazer com que as vacinas chegassem na região. Talvez o melhor fosse o rio.

Os residentes dizem que uma hora de pedalada é suficiente para chegarmos ao rio principal.Temos que considerar todas as possibilidades enquanto planejamos. Com as informações básicas em mãos, tínhamos que retornar para o posto de Bobambo. Seriam mais umas quinze árvores na volta.

Consultas ao longo das estradas

No caminho de volta encontramos uma mãe carregando uma criança. Ela tinha nos visto passar e estava na estrada esperando o nosso retorno. O bebê tinha feridas infeccionadas por todo corpo. As feridas estavam lá há meses.

A julgar pela pele da mãe, a família toda deveria estar com escabiose e as feridas do bebê tinham infeccionado. O bebê estava febril e tossindo muito, e o melhor seria levá-lo conosco até o posto de saúde de Bobambo, já que em Boso Ngubu não havia antibióticos.

Benjamin se recusou. A estrada era muito complicada e seria muito difícil seguir adiante com aquele bebê amarrado ao meu corpo, por mais de quatro horas pela selva. Mas conseguimos que a mãe jurasse que iria a pé ao posto, junto com a família.

No dia seguinte acordamos com a chuva batendo na nossa cabana. Estava um dia horrível e todos sabíamos que não poderíamos seguir debaixo de chuva. Ficamos dentro das cabanas por várias horas, sem fazer nada.

Apesar da chuva, a mulher chegou carregando a criança no colo. Nele e eu cuidamos das feridas infeccionadas. Tudo ficaria bem logo.

Esperar a chuva é chato e decidimos seguir de motocicleta mesmo assim. Preferimos deixar algumas malas com umas missionárias que encontramos na estrada. Elas nos ofereceram almoço – macarronada. Nossos olhos quase caíram da nossa cara. Nossa dieta era basicamente bananas e mandioca. Recarregados, seguimos para o leste em direção a Boso.

Uma coleção de tombos

“Com o caminho particularmente ruim por causa da chuva, os motoristas mais experientes ficaram mais tempo na direção. Não havia quase nenhum lugar para eu me sentar entre o motorista e a bagagem, fiquei completamente espremida.

A equipe caiu quatro vezes naquele dia. Eu percebia que íamos cair e gritava de medo antes da queda. Felizmente ninguém ficou ferido. Um pneu furou de noite, mas tínhamos que seguir já que não podíamos mais retornar.

Quando nós finalmente chegamos estávamos tão cansados que só queríamos dormir. Colocamos nossas três cabanas uma perto da outra, bem próxima ao posto de saúde. No dia seguinte, seguimos adiante, imaginando andar três quilômetros no rio e outros quatro quilômetros num outro rio. Mas nossas previsões acabaram não se concretizando.

Um caminho de pântanos

O caminho era um pântano com água e muita lama até os joelhos. Quando chegamos ao rio, continuamos na canoa. O rio só podia ser usado na época de chuvas, senão era um riacho muito pequeno e estreito.

Depois de uma hora e meia, chegamos ao local onde continuaríamos a pé. Finalmente chegamos a Boso Masua, por volta do meio dia, e encontramos uma equipe de MSF, que estava lá todo o tempo. Estávamos todos muito cansados e decidimos passar a noite.

Naquela tarde fomos de bicicleta para Ebongo Mbolu – para conversar com o chefe da comunidade e com os agentes comunitários de saúde. Eles nos falaram sobre outros cinco vilarejos dentro da floresta que ficavam a um dia de caminhada. Eles nos ajudaram também a encontrar outras comunidades para serem vacinadas.

No dia seguinte voltamos pelo mesmo caminho do dia anterior. De volta ao posto de saúde, empacotamos as coisas para seguir viagem. Uma das canoas tinha acabado de chegar e estava sendo carregada com todo o nosso material.

Ontem, iniciamos os preparativos para a ‘cadeia fria’ – um elemento fundamental para o sucesso da campanha de vacinação. Quando eu penso no esforço todo que tivemos, a idéia de manter as vacinas numa ‘cadeia fria’ me assusta.

No meu próximo diário eu terminarei a história de Djombo e direi o que Karl, nosso logístico, vem aprontando para o início da nossa campanha de vacinação.

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