De criança refugiada a profissional de MSF: “Prometi a mim mesmo dar algo em troca”

O coordenador de finanças e recursos humanos de MSF baseado no Reino Unido, Moses Soro, compartilha sua história desde quando escapou de conflitos até encontrar segurança e cumprir seu objetivo de vida.

Foto: Frederic NOY/COSMOS Legenda: Crianças do Sudão do Sul brincando no acampamento de refugiados de Bidibidi, em Uganda, em frente às instalações da MSF. Maio de 2017.

Alimento terapêutico. Não via isto há décadas.

Eu estava na Síria trabalhando com Médicos Sem Fronteiras (MSF). Eu era o coordenador de finanças e recursos humanos, ajudando a garantir que nossos projetos médicos tivessem a equipe e os recursos necessários.

Os pacientes de um dos projetos estavam recebendo alimento terapêutico, uma pasta de amendoim fortificada usada para tratar a desnutrição.

Eu tinha visto pela última vez quando era jovem e estava desnutrido, quando a pasta de amendoim foi fornecida por MSF a mim e à minha família, isto provavelmente ajudou a salvar a minha vida.

O ponto de partida

A história de como eu vim trabalhar com MSF é muito longa. Espero poder resumir.

Sou originário do Sudão do Sul. Antes do Sudão do Sul ser um país independente, fazia parte do Sudão e houve uma guerra prolongada entre as populações do sul e do norte.

Crescendo com uma guerra constante, vimos as pessoas feridas vindo da linha de frente. Todos nós na escola primária fomos recrutados para fazer treinamento militar. Tivemos que nos deslocar várias vezes para escapar do conflito.

Foto: Geraint Hill/MSF
Legenda: Refugiados são vacinados contra a cólera em um acampamento em Uganda. Maio de 2018.

Em algum momento, o conflito nos alcançou novamente. Me lembro dos sons das bombas. Os aviões acima de nós, parecia que qualquer um poderia ser um alvo.

Eu era jovem naquela época, estava no início da adolescência. Meus pais tomaram a decisão. Tivemos que nos evacuar, sair da zona de guerra.

Todos em nossa cidade e nos vilarejos vizinhos cruzaram a fronteira e se tornaram refugiados.

Uganda

Em Uganda, estávamos a salvo do conflito, mas as condições eram árduas.

Estávamos vivendo no mato, dormindo do lado de fora, expostos às intempéries, bem como à chuva. Não podíamos nos proteger de mosquitos, e muita gente tinha malária. Em um momento inicial, não havia latrinas, então os casos de cólera eclodiram.

Pessoas começaram a morrer, especialmente crianças. Sou de uma família grande, e vários dos meus irmãos e irmãs morreram.

Mas adivinha quem chegou? MSF. Eles foram os primeiros a chegar. Eu mesmo fui atendido por MSF.

Isso deixou uma profunda impressão em mim. À medida que eu melhorava, outras organizações chegavam e o acampamento se formalizava, enquanto eu passava pela escola e, em algum momento, pela universidade, dizia para mim mesmo: “Um dia trabalharei com MSF e vou retribuir a ajuda e a generosidade que recebi”.

“Porque sem MSF, talvez eu estivesse morto. Como meus irmãos, como meus primos, como todas as pessoas que não conseguiram sobreviver” – Moses Soros, coordenador de finanças e recursos humanos de MSF.

Próximos passos

Eventualmente, nossa família foi realocada. Eu vim para o Reino Unido e estudei Relações Internacionais na universidade. Depois que o Sudão do Sul se tornou independente, voltei para lá e me preparei para ser gerente de banco. Então, eu trabalhei para um ONG que ajuda na formação de políticos em boa governança e outro no engajamento cívico, antes de trabalhar na política eu mesmo. Eu queria servir a minha comunidade.

Eu não havia esquecido minha promessa a mim mesmo, mas sabia que não queria me juntar a MSF enquanto estivesse politicamente ativo. Isto não é compatível com os princípios de neutralidade e imparcialidade da organização.

Mais tarde, quando chegou a hora de voltar para o Reino Unido, fiz uma pós-graduação em gestão de recursos humanos para desenvolver minhas habilidades. Então, eu finalmente me candidatei para MSF.

Síria

Quando MSF disse que meu perfil estava de acordo com um projeto na Síria, eu não hesitei. Eu havia visto programas de notícias sobre a guerra na TV e um pouco sobre seus efeitos devastadores. É difícil comparar, mas senti que o que eles estavam passando era de alguma forma semelhante ao que eu havia experienciado [no Sudão do Sul], ou pior.

MSF administra vários projetos médicos na Síria, e eu trabalhei em dois deles: um deles fornecia medicamentos vitais e apoio para pessoas com doenças crônicas, o outro atendia pessoas com tuberculose que estavam em detenção.

Eu estava focado em todos os aspectos administrativos que permitem que um projeto funcione sem problemas. Isso significou o recrutamento de muitos profissionais, incluindo o trabalho para garantir que nossas práticas e políticas fossem transparentes para todos os candidatos. Também organizamos muitos treinamentos e acompanhamentos, desenvolvendo as habilidades e a confiança de nossa equipe.

Foto: Mohammed Sanabani/MSF
Legenda: MSF trabalha para atender pessoas com doenças crônicas que foram excluídas dos cuidados de saúde devido ao conflito na Síria. Janeiro de 2020

Fui muito aberto com meus colegas sírios. Eu disse a eles que era um refugiado, que vivi um conflito e sei como é ser uma pessoa deslocada. Muitos sírios escaparam da guerra deixando o país, mas muitos outros foram deslocados dentro da Síria.

Eu queria oferecer algum encorajamento, alguma esperança. Para tranquilizá-los que eventualmente as coisas ficarão mais resolvidas e que eles serão capazes de viver felizes novamente.

Um lembrete

Depois que eu vi pela primeira vez o alimento terapêutico no escritório, mantive um pacote na minha mesa. Isso me lembrou o que me salvou, o porquê de estarmos lá.

Agora estou de volta ao Reino Unido, e eu pretendia trazer esse pacote de volta para mostrar aos meus filhos. Eu queria que eles soubessem exatamente o que isso parece, para dizer: “Sem isso, eu não estaria aqui para ser um pai para vocês”.

Mas com toda a pressa de partir, o alimento terapêutico foi a única coisa que esqueci. Ficou na minha mesa na Síria.

“Digo aos meus filhos: ‘Eu trabalho com MSF porque eles me ajudaram’” – Moses Soros, coordenador de finanças e recursos humanos de MSF.

Agora, comecei um novo desafio: treinar para ser um policial com a Polícia Metropolitana. Mas assim que meu treinamento inicial for concluído, espero desempenhar uma nova tarefa com MSF e continuar a retribuir de alguma forma.

Minha mensagem para os doadores de MSF

Sem a generosidade dos doadores de MSF, talvez eu não estivesse aqui agora.

Eu testemunhei o grande trabalho que a organização realiza quando eu estava em uma situação terrível como um jovem refugiado em Uganda e MSF me deu os cuidados médicos de que eu precisava. Eu vi isso de novo mais recentemente, quando me juntei à equipe de MSF na Síria, onde levamos cuidados de saúde às pessoas que mais necessitam.

Eu trabalho como coordenador de finanças de MSF, então posso afirmar que cada centavo em nossos orçamentos é contabilizado e que as prioridades operacionais são cuidadosamente correspondidas com as necessidades no terreno. Então, seu dinheiro está indo na direção certa. Vai ajudar muito. Quando digo isso, falo sério, não apenas porque trabalho com MSF, mas porque MSF estava lá quando eu precisei de ajuda, e esta generosidade, como a sua, me tocará pelo resto da vida.

 

Compartilhar
Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on print