Cólera no norte da Síria: um desafio em uma situação humanitária já precária

Além da epidemia de cólera, população enfrenta inverno rigoroso, com infraestrutura de saúde local afetada por 11 anos de conflitos.

Foto: Abd Almajed Alkarh/MSF

São nove horas da manhã na cidade devastada pela guerra, porém ainda agitada, Raqqa, no nordeste da Síria. Fatina, que é natural de Aleppo, está deitada em sua cama em uma Unidade de Tratamento de Cólera (UTC) apoiada por Médicos Sem Fronteiras (MSF). Ela ainda se sente fraca. Uma enfermeira a ajuda a beber uma solução de reidratação oral enquanto a paciente se recupera da cólera, uma doença que não é vista na Síria há mais de uma década.

Fatina veio visitar seu filho, que se mudou para a cidade após fugir dos conflitos no noroeste do país há 10 anos. Mas suas esperanças de um reencontro feliz foram rapidamente frustradas logo após a sua chegada, quando ficou doente. Agora, ela está se preparando para ver sua família; não pessoalmente, mas através de uma chamada de vídeo, um serviço fornecido na unidade para minimizar o número de visitantes e ajudar a conter a propagação da bactéria.

“Não sei por que fiquei tão doente, mas parecia que estava morrendo”.
– Fatina, paciente diagnosticada com cólera.

“Vim para Raqqa para visitar meu filho há alguns dias e agora estou aqui”, disse Fatina. Tendo sobrevivido aos conflitos que assolam a região desde 2011, Fatina encontrou uma nova ameaça iminente. “Fui levada pela primeira vez ao hospital nacional de Raqqa pela minha família. Minha condição piorou; eu estava sofrendo de uma forte dor de cabeça, diarreia e vômitos incontroláveis quando cheguei ao centro de tratamento. Não sei por que fiquei tão doente, mas parecia que estava morrendo”.

Fatina foi tratada no novo Centro de Tratamento de Cólera apoiado por MSF em Raqqa, nordeste da Síria. 3 de novembro de 2022. Foto: Azad Mourad/MSF
Fatina foi tratada no novo Centro de Tratamento de Cólera apoiado por MSF em Raqqa, nordeste da Síria. 3 de novembro de 2022. Foto: Azad Mourad/MSF

No nordeste da Síria, MSF está respondendo ao surto em parceria com as autoridades locais de saúde, incluindo o apoio a uma Unidade de Tratamento de Cólera em Raqqa. Antes, o local era um hospital para COVID-19, mas ficou menos movimentado por meses, pois o número de pacientes em condição crítica diminuiu, e uma instalação dedicada não foi mais considerada necessária. Agora, as luzes estão ligadas novamente, e uma equipe permanece na recepção recebendo os pacientes na chegada. Vários profissionais da limpeza estão mantendo a higiene da clínica, limpando os pisos e as superfícies, reconhecendo a importância da desinfecção após terem trabalhado durante a pandemia da COVID-19, quando os enfermeiros estavam sobrecarregados com os pacientes.

Desde que o surto de cólera foi declarado, em setembro, MSF tratou mais de 3 mil casos suspeitos de cólera no Nordeste. Com a diminuição dos níveis de água no rio Eufrates devido a uma seca prolongada, enquanto muitas comunidades recorrem a fontes comprometidas, como o rio ou canais abertos, o perigo de um surto de cólera prolongado continua a existir, especialmente com a infraestrutura de saúde local impactada por 11 anos de conflitos.

Centro de tratamento de cólera apoiado por MSF em Raqqa, nordeste da Síria. 3 de novembro de 2022. Foto: Azad Mourad/MSF
Centro de tratamento de cólera apoiado por MSF em Raqqa, nordeste da Síria. 3 de novembro de 2022. Foto: Azad Mourad/MSF

Na província de Idlib, noroeste da Síria, Alaa Hassan, de 30 anos, chegou à Unidade de Tratamento de Cólera apoiada por MSF (a única unidade ativa atualmente na área) exausta e doente. “No começo, eu pensei que era apenas uma infecção intestinal, mas em poucas horas, meu vômito e diarreia pioraram, eu quase desmaiei, e minha pressão arterial caiu de repente”, disse Alaa.

Sua sogra tinha sintomas semelhantes, mas elas não sabiam a origem da infecção. “Ouvi falar da propagação de cólera na Síria, mas não esperava pegar a doença e sofrer com sintomas tão graves”, acrescentou. Dois dias após sua admissão, não muito depois de receber tratamento, todos os seus sintomas haviam desaparecido.
No norte de Idlib, MSF também está apoiando uma Unidade de Tratamento de Cólera, além de duas outras instalações em Afrin e Al-Bab, norte de Aleppo, em parceria com a organização Al-Ameen. Também estamos administrando e apoiando quatro pontos de reidratação oral, o primeiro passo no tratamento, para pacientes que estão apresentando sintomas, mas que não se encontram no estágio em que precisariam de hospitalização.

Cerca de 300 pacientes foram tratados nos pontos e 220 pacientes nas unidades no norte de Idlib, aproximadamente 20% dos quais foram diagnosticados com sintomas graves. A maioria desses casos graves ocorreram devido a um atraso na procura por tratamento.

Um profissional de saúde checando a condição de uma paciente com cólera no Centro de Tratamento de Cólera apoiado por MSF na província de Idlib, noroeste da Síria. 1º de novembro de 2022. Foto: Abd Almajed Alkarh/MSF
Um profissional de saúde checando a condição de uma paciente com cólera no Centro de Tratamento de Cólera apoiado por MSF na província de Idlib, noroeste da Síria. 1º de novembro de 2022. Foto: Abd Almajed Alkarh/MSF

O cólera surgiu pela primeira vez em Deir ez-Zur, ligada à contaminação do rio Eufrates e à grave escassez de água no norte da Síria, e depois se espalhou para Raqqa e Aleppo, no Noroeste, antes de tomar rapidamente o país.

Equipe de água e saneamento mistura cal com lodo fecal do Centro de Tratamento de Cólera para eliminar a bactéria causadora da cólera, Raqqa, nordeste da Síria. 3 de novembro de 2022. Foto: Azad Mourad/MSF

Dalal e seu filho Saleh, que são do interior de Raqqa, foram encaminhados à Unidade de Tratamento de Cólera em Raqqa há pouco tempo. A mãe se dirigiu desesperadamente para o local com o seu bebê gravemente doente, utilizando o transporte público – um micro-ônibus. Com a criança perdendo fluidos e desmaiando constantemente, ela relata que a jornada parecia que nunca terminaria. Mãe de oito filhos, Dalal precisou deixar as outras crianças com o pai.

“Eu tenho oito filhos. Saleh, de cinco meses de vida, é o mais novo”, disse Dalal, sentada em uma cama com o filho, que está dormindo tranquilamente na UTC. “Ele teve diarreia grave há uma semana. Pensei que fosse por causa do leite de ovelha, mas a saúde dele piorou. Eu o trouxe a este centro e, graças a Deus, ele está se sentindo muito melhor agora”.

Dalal e seu filho foram tratados no novo Centro de Tratamento de Cólera apoiado por MSF em Raqqa, nordeste da Síria. Azad Mourad/MSF.

Engajando as comunidades

Promotor de saúde trabalha no Centro de Tratamento de Cólera apoiado por MSF para aumentar a conscientização sobre a doença. Raqqa, novembro de 2022. Foto: Azad Mourad/MSF

Ahmad Ali é da equipe de promoção de Saúde da UTC em Raqqa. Ele faz parte de um grupo de agentes comunitários de saúde no nordeste e noroeste da Síria que estão à disposição para visitar os pacientes em seus quartos e se reunir com as famílias para conversar sobre suas preocupações e responder às suas perguntas. Os profissionais também explicam como reconhecer os primeiros sintomas da cólera e o que fazer se suspeitarem que eles ou um membro da família tenham sido infectados pela doença.

“Algumas famílias nas áreas rurais de Raqqa me disseram que estavam usando a água diretamente de canais abertos ou do rio para suas necessidades domésticas e para beber. Esta água está contaminada e insegura, e quando a estação de água mais próxima não está funcionando, as pessoas naturalmente procurarão outros recursos, o que as leva a contrair a doença”, disse Ahmad.

“Costumávamos atender 25 pacientes em média todos os dias, mas [no nordeste da Síria] os casos diminuíram acentuadamente. As pessoas agora sabem mais sobre como proteger a si mesmas e a suas famílias contra as infecções”, acrescentou Ahmad.

Enquanto o norte da Síria enfrenta outro inverno rigoroso, em meio a uma situação de segurança instável, as comunidades locais estão fazendo tudo o que podem para ajudar a conter o surto, para que isso não adicione outra camada de complexidade a uma situação humanitária já precária.

Leia também: Avanço da cólera força entidades a racionar vacinas

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