Câncer do colo do útero no Malaui: quando a inteligência artificial ajuda a melhorar o diagnóstico

Em cinco perguntas, saiba como estudo da Fundação MSF busca aprimorar diagnóstico da doença por meio da ação combinada de um teste PCR e inteligência artificial.

Foto: Diego Manjibar

O câncer do colo do útero é o segundo câncer mais mortal em países de baixa e média renda. No Malaui, onde MSF atua, mais de quatro mil mulheres são diagnosticadas com câncer do colo do útero por ano. Com 2.905 mortes em 2020, o país também teve a segunda maior taxa de mortalidade do mundo devido à doença.

Como podemos explicar uma taxa de mortalidade tão alta por esta doença que, em países de alta renda, é facilmente evitável e geralmente menos mortal? As razões incluem o acesso limitado à prevenção e ao diagnóstico, que nem sempre são confiáveis. A diretora da Fundação MSF, Clara Nordon, explica essas e outras questões com base no que testemunhou ao lado das equipes da organização no Malaui.

Qual o objetivo do projeto de MSF?

“O projeto começou há três anos, e a ideia inicial era trabalhar em um novo e aprimorado protocolo para o rastreamento do câncer do colo do útero. Nosso objetivo é ampliar a triagem do câncer do colo do útero a fim de detectar as mulheres em estágios menos avançados e tratá-las com mais facilidade. Quando o diagnóstico é realizado de forma precoce, o tratamento pode ser realizado imediatamente no centro de saúde e é relativamente indolor e muito rápido, demandando apenas alguns minutos. Não devemos, portanto, “perder” estas oportunidades.

Há três meios para aprimorar o protocolo: selecionar mais mulheres, mais cedo e com mais precisão. Por isso, estamos trabalhando na ação combinada de um teste PCR muito preciso, acessível o suficiente para ser escalonado e com uma melhor avaliação visual através do uso da inteligência artificial. Se formos bem-sucedidos, há uma esperança real de provocar uma mudança positiva no terreno e salvar a vida de muitas mulheres afetadas por esta doença.

Precisamos realmente imaginar o que significa viver com câncer do colo do útero no Malaui: a falta de opções de tratamento, uma vez que a doença se desenvolve, a dor que ela causa e o estigma em alguns casos. Toda a unidade familiar é afetada em um país onde quase 10% dos adultos vivem com HIV/Aids.”

 

Por que tantas mulheres morrem devido ao câncer do colo do útero no Malaui e em muitos países de baixa e média renda, enquanto em países de alta renda essa doença é facilmente evitável e geralmente menos mortal?

“Em primeiro lugar, o acesso à vacina contra o HPV (sigla em inglês para Papilomavírus Humano) continua limitado, mesmo sendo uma das únicas vacinas que podem prevenir um câncer grave como esse. Em segundo lugar, o atual método de diagnóstico – baseado em uma avaliação visual do colo uterino – não é confiável. Embora este método seja barato e tenha a vantagem de poder ser realizado imediatamente no centro de saúde, ele deixa muito espaço para interpretação e, portanto, erros. Isso significa que as mulheres que foram examinadas às vezes vão para casa e retornam alguns anos depois com um câncer que não pode mais ser tratado.

 

As equipes de MSF realmente fazem um trabalho incrível em campo e muitas vezes têm que cuidar de mulheres para as quais as opções de tratamento não estão mais disponíveis. É também muito desafiador para a equipe de enfermagem. Nós precisávamos encontrar uma maneira de melhorar essa estratégia de diagnóstico e reduzir essa lacuna. Esse câncer é causado por um vírus, e devemos pensar nesta luta como pensamos na luta contra uma epidemia. A vacinação e o diagnóstico são nossos melhores aliados.”

Foto: Fatoumata Tioye Coulibaly

Como este projeto foi desenvolvido?

“MSF, como os demais atores envolvidos na prevenção e no tratamento do câncer do colo do útero, estava focado no aprimoramento do diagnóstico da doença. Mas quando há discordâncias mesmo entre os maiores especialistas, o espaço para melhorias é limitado.

No início de 2020, a divisão médica nos informou de um estudo publicado pelo Journal of the National Cancer Institute, que destacou o potencial da inteligência artificial na análise fotográfica para uma melhor detecção de lesões pré-cancerosas. Com base em nossa experiência com o aplicativo Antibiogo (um aplicativo que facilita a leitura de testes que determinam a sensibilidade das bactérias para diferentes antibióticos), decidimos investigar mais a fundo o potencial da inteligência artificial.

Pauline Choné, uma consultora da Fundação MSF, juntou-se a nós para iniciar esse trabalho. Entramos em contato com os autores, incluindo Mark Schiffman, um especialista em epidemiologia molecular que vem estudando o HPV há mais de 35 anos dentro do Instituto Nacional do Câncer (NCI, sigla em inglês), nos Estados Unidos. Charlotte Ngo, consultora em oncologia de MSF, Pauline e eu estávamos determinadas a explorar esse caminho com eles desde a primeira reunião. Quando discutimos sobre o projeto no Malaui, todos toparam imediatamente. Sem eles, não poderíamos fazer muito.

Para começar, concordamos em retrabalhar o algoritmo e depois comparar os resultados. Para isso, decidimos utilizar o banco de imagens do colo uterino – coletadas por MSF – e construir uma ferramenta de anotação “ideal” do ponto de vista dos médicos. Formamos uma parceria com o Instituto Real de Tecnologia da Suécia (KTH, ou Royal Institute of Technology) e trabalhamos por mais de um ano nesta ferramenta preliminar para a inteligência artificial, essa fase crucial é chamada de “anotação do conjunto de dados”.

Quando terminamos a ferramenta de anotação, o NCI nos informou que seu algoritmo já estava completo com resultados que eram conclusivos o suficiente para iniciar o estudo de validação. Isso também faz parte da inovação. Trabalhando durante meses e não necessariamente utilizando o resultado. A boa notícia era que seríamos capazes de avançar mais rapidamente e potencialmente ser úteis no campo de forma mais rápida.

Portanto, concentramos todos os nossos esforços na construção formal da parceria e na conexão de MSF no Malaui e Epicentre (o centro de pesquisa e vigilância epidemiológica de MSF) ao estudo em larga escala que o NCI estava preparando: o estudo PAVE, uma avaliação visual automatizada sobre o HPV.

O objetivo inicial desse consórcio era criar um vasto estudo envolvendo 100 mil mulheres em todo o mundo, para avaliar uma nova abordagem para o diagnóstico do câncer do colo do útero. Com a ajuda das equipes de MSF no Malaui, que estão na linha de frente deste projeto, e com a validação dos comitês de ética das autoridades de MSF e do Malaui, nosso objetivo é incluir 10 mil mulheres. Essa amostra será particularmente interessante nesse estudo, pois infelizmente teremos uma alta prevalência de pessoas vivendo com HIV/Aids e, portanto, resultados potenciais que também nos ajudarão a melhorar o atendimento a essa população duplamente afetada.”

Como é feita essa abordagem inovadora e como ela mudará a atual situação em relação à doença?

“Este estudo é baseado na introdução de duas grandes inovações:

Triagem sistemática por meio de um teste PCR, que irá diagnosticar e identificar as mulheres que são portadoras do HPV com alto risco de desenvolvimento do câncer, possibilitado por uma nova tecnologia de diagnóstico mais rápida e mais acessível, capaz de ser ampliada pelas autoridades de saúde.

Aprimoramento da avaliação visual com auxílio da inteligência artificial.
Para isso, durante o período do estudo, faremos uma Inspeção Visual com Ácido Acético e guardaremos as fotografias do colo uterino para mulheres diagnosticadas com HPV e vincularemos o status por meio de uma biópsia, razão pela qual o projeto se equipou com um laboratório de patologia anatômica em escala real.

A boa notícia é que, mesmo antes que os resultados do estudo estejam disponíveis, forneceremos uma melhor triagem, principalmente devido ao teste PCR sistemático.”

Foto: Fatoumata Tioye Coulibaly

Qual o papel da Fundação MSF e quais os próximos passos?

“Pode-se pensar que quatro mil mulheres diagnosticadas não são “muitas”, ou que isso não representa uma ação em larga escala suficiente. Mas quando sabemos que, em 2020, quase três mil mulheres morreram quando isso poderia ser evitado, o número não importa. E esse é também o feedback que estávamos recebendo dos profissionais em campo: a desigualdade gritante para essas mulheres diante de uma doença que seria facilmente evitável em outros lugares.

Nosso papel é atuar como pesquisadores, avaliar quais tecnologias podem contribuir, de forma bastante “simples” e direta para as práticas médicas em ambientes vulneráveis e adaptar práticas e ferramentas. Nosso principal trabalho será então o de implementar um projeto, utilizando os melhores recursos disponíveis tanto interna como externamente. Isso significa organizar uma forma de trabalhar com vários grupos, de diferentes origens e culturas em direção ao mesmo objetivo. Isso também é o que é tão empolgante e enriquecedor.

Nosso estudo começa em Blantyre, em maio de 2023. Esse estudo prospectivo terá duração de 12 meses e fornecerá dados para o estudo PAVE. No final de 2024, os resultados de todo o estudo PAVE do consórcio (sobre 100 mil mulheres) serão conhecidos. Se os resultados forem conclusivos, o NCI recomendará que este novo protocolo seja amplamente promovido e utilizado em todos os países de baixa e média renda. Esperamos eventualmente mudar o protocolo de triagem em todos esses países, o que teria um impacto significativo em nível global.”

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