Caminhantes esquecidos: os desafios dos migrantes para obter assistência médica no Peru

Por Serena Sorrenti, especialista em migração e violência da Unidade Médica Brasileira (BRAMU)*.

Foto: Max Cabello Orcasitas/2022/Peru

Trabalhei nos últimos oito anos com assuntos migratórios em diferentes continentes e sempre fico sensibilizada com os grandes movimentos de populações porque considero que são um sintoma de uma sociedade disfuncional. Levando isso em conta, a migração venezuelana causou-me um grande impacto.

Entre novembro e dezembro do ano passado, estive por um mês em Tumbes, na fronteira norte do Peru com o Equador, onde pude observar o que pareciam ser rios de pessoas caminhando e caminhando sem descanso. Por essa razão, elas são conhecidas como “caminhantes”: famílias inteiras, com meninos e meninas, recém-nascidos, adolescentes grávidas, idosos, pessoas em cadeiras de rodas, em carrinhos, e às vezes até cachorros e gatos… Empacotam os poucos pertences que ainda não venderam, carregam o que tem valor sentimental e partem. Pareceria que andar é a sua salvação, como se partir em caminhada ajudasse essas pessoas a deixar para trás a dor. Dá para imaginar?

Foto: Max Cabello Orcasitas/2022/Peru – Uma migrante venezuelana, acompanhada de seu cachorro, tenta pegar carona para Tumbes, no Peru. Ela já havia caminhado desde Águas Verdes, cerca de 15 quilômetros pela rodovia Panamericana.

O ACNUR (Alto Comissariado da ONU para Refugiados) estima que, no final de 2021, mil venezuelanos deixavam diariamente seu país sem a intenção de regressar. O número previsto de migrantes venezuelanos no mundo todo poderia chegar a 7,1 milhões em 2022 – com 6,1 milhões ficando na América Latina.

As características dos que fazem a viagem mudaram consideravelmente ao longo do tempo: na primeira onda migratória (2016-2018), homens adultos com um nível educacional e uma situação laboral relativamente bons representavam o grupo mais numeroso, como ocorre na maioria dos primeiros movimentos migratórios. Hoje em dia, esta tendência mudou completamente. Crianças de zero a cinco anos e os recém-nascidos correspondem a 20% de todos os migrantes. A proporção de famílias com crianças e de mulheres grávidas aumentou significativamente, sendo este em si mesmo um indicador de vulnerabilidade.

 

 

Foto: Max Cabello Orcasitas/2022/Peru – Um casal de migrantes da Venezuela e suas filhas gêmeas descansam perto do posto de saúde de MSF em uma área conhecida como “Gasolinera”, porque está localizada perto de um posto de gasolina próximo à fronteira Peru-Equador.

 

A pouca ingestão de alimentos e as condições precárias de higiene deterioram a saúde dos migrantes. Além disso, para além da saúde física, tudo o que foi descrito até agora também tem impacto na saúde mental, determinando as escolhas (ou a falta delas) feitas pelas pessoas ao longo de sua jornada. As condições pioraram e os recursos disponíveis para a viagem diminuíram muito nos últimos dois anos devido ao aumento da pobreza no país de origem, que parece ser o fator que impulsiona a migração venezuelana.

As famílias relataram ter viajado em média durante um ou dois meses, muito mais tempo do que quando a maioria podia pagar uma passagem de ônibus ou fazer uma viagem de caminhão. Outras famílias me contaram que não se lembravam de quando haviam ingerido sua última refeição quente, talvez há dez dias. Um casal jovem esperando um filho me contou que, durante a viagem, tiveram que implorar por comida e que em uma ocasião no Equador, jogaram comida no chão para que eles a apanhassem e comessem, como se fossem animais. Senti vergonha por tamanho maltrato, mas o que mais me impactou foi eles terem relatado o episódio com um sorriso triste e resignado, como se fosse uma situação corriqueira.

A discriminação, que na pior das hipóteses se converte em xenofobia, está se transformando no “novo normal” para os migrantes da região, um fenômeno que se agravou ainda mais com a pandemia.

Foto: Max Cabello Orcasitas/2022/Peru – Um imigrante venezuelano de 26 anos carrega seus pertences pela Rodovia Pan-Americana enquanto tenta chegar a Tumbes.

 

Apesar de a lei de migração de 2017 garantir aos estrangeiros os mesmos direitos à saúde, ao trabalho e à educação que aos peruanos, existem barreiras de acesso à saúde para os venezuelanos em trânsito. Isto significa que trâmites burocráticos e administrativos desnecessários se convertem progressivamente em normas à medida em que o pessoal de saúde que não está corretamente informado acredita tratar-se de regulações reais. Por exemplo: no Peru, mulheres grávidas e crianças de zero a cinco anos podem ter acesso por lei a um seguro de saúde público e gratuito, independentemente de sua condição migratória. Apesar disso, para ter esse acesso, é usual que se peça às mulheres venezuelanas um comprovante de residência e um ultrassom, o que a lei de maneira nenhuma estabelece como critério de adesão. Como o pessoal de saúde não está informado em relação a esta situação, estes documentos são solicitados de maneira sistemática como parte do trâmite e, caso não sejam apresentados, o acesso aos serviços de saúde é negado.

Obviamente, os documentos solicitados são impossíveis de obter para uma mulher em trânsito, o que leva à recusa do atendimento médico. À luz deste problema, a presença de Médicos Sem Fronteiras (MSF) neste contexto é ainda mais oportuna, não apenas para prestar atendimento médico aos mais vulneráveis, mas também e especialmente para garantir-lhes o acesso à cuidados médicos públicos onde já existem esse direito e essa infraestrutura para isso.

Foto: Max Cabello Orcasitas/2022/Peru – Um migrante venezuelano segura seu filho de dois anos enquanto a criança é examinada pela médica em um posto de saúde de MSF na área conhecida como “Gasolinera”

 

Os desafios e os obstáculos que os migrantes enfrentam não terminam no lugar de destino. O Peru abriga a segunda maior população de migrantes venezuelanos (1,5 milhão), atrás da Colômbia. Apesar disso, devido ao fato de as fronteiras permanecerem formalmente fechadas em função da pandemia, os migrantes não têm no momento vias legais para regularizar sua situação quando entram no país, exceto aqueles que apresentem vulnerabilidades muito específicas. Isto implica que a política migratória peruana apresenta um vácuo legal, o que resulta em uma negação de direitos importantes, assim como uma limitação aos migrantes que já vivem em condições precárias, sem acesso a serviços básicos. Sem um status regular, os migrantes não têm acesso à saúde.

O vácuo deixado pela legislação cria uma “zona cinzenta”, que representa esse espaço no qual as barreiras de acesso à atenção médica e para onde deve apontar, em última instância, o trabalho de MSF: necessitamos desmantelar e eliminar essas barreiras, independentemente de serem por falta de conhecimento, sensibilização ou discriminação.

 

*Unidade de MSF dedicada a oferecer apoio técnico a projetos por meio de uma abordagem médica, psicossocial e epidemiológica nas áreas de migração, violência urbana, saúde ambiental e saúde adolescente.

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