“A situação é extremamente instável”: as pessoas continuam a fugir da violência em Cabo Delgado, Moçambique

Entrevista com Paulo Milanesio, coordenador de projeto de MSF em Mueda, vila ao norte da província moçambicana de Cabo Delgado, onde centenas de milhares de pessoas procuraram refúgio do conflito em curso

Foto por: Igor G. Barbero/MSF
Foto por: Igor G. Barbero/MSF

Embora a violência tenha diminuído em Cabo Delgado, Moçambique, ainda há episódios espalhados e recorrentes de violência que continuam a fazer as pessoas fugirem. Longe do fim, a crise humanitária deixou centenas de milhares de pessoas desalojadas em condições precárias. Em entrevista, Paulo Milanesio, coordenador de projeto de Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Mueda, Norte de Cabo Delgado, fornece um panorama sobre o contexto atual na província:

O conflito em Cabo Delgado já ocorre há mais de quatro anos. Como está a situação atualmente?

 Durante o ano de 2020 e a primeira metade de 2021, a violência foi intensa, incluindo conflitos e ataques por grupos armados não-estatais contra aldeias e grandes vilas. Isto forçou muitas pessoas na faixa costeira e ao nordeste de Cabo Delgado a fugirem de suas casas e a procurarem refúgio em centros de trânsito e de reinstalação localizados nas zonas Oeste e Sul da província. Atualmente, há centenas de milhares de pessoas, muitas das quais estão deslocadas há um ano ou mais.

Nos últimos meses, os exércitos de Moçambique e de outros países aliados na região lançaram ofensivas para reconquistar o controle de áreas onde as pessoas tinham fugido. Algumas das áreas retomadas já foram preparadas ou estão sendo preparadas para que quem dali fugiu possa regressar. Simultaneamente, as ofensivas recentes forçaram grupos armados não-estatais a dispersarem, e a violência diminuiu, mas há ainda frequentes focos de conflito que continuam a obrigar as pessoas a fugir.

 

Mueda situa-se a 100 e a 180 km de distância, respectivamente, de Mocímboa da Praia e de Palma, duas das principais cidades que foram atacadas em Cabo Delgado há meses. O que as equipes de MSF estão observando nesta localidade?

 Inauguramos o projeto em Mueda em março para prestar assistência médica e humanitária às pessoas que fugiam do conflito, numa fase mais inicial de sua fuga. Nesta vila montanhosa, há cerca de 12 mil pessoas deslocadas vivendo no local de reinstalação Eduardo Mondlane, que foi estabelecido em abril.

A partir daí, as nossas equipes móveis deslocam-se até diversos locais nos distritos de Mueda, Nangade, Muidumbe e Mocímboa, onde existem vários pontos de acesso de comunidades deslocadas (com cerca de 50 mil pessoas no total), que chegaram, na maioria, vindas de Palma e de Mocímboa. A partir de Mueda, alcançamos também Negomano, na fronteira com a Tanzânia, onde algumas pessoas deslocadas às vezes voltam depois de passarem um breve período no país vizinho.

Em vastas áreas destes distritos, o sistema de saúde foi profundamente afetado pelo conflito; algumas estruturas foram atacadas e os profissionais médicos partiram. Muitas áreas parecem agora vilas-fantasma, uma vez que as pessoas fugiram. Em outros locais, os centros de saúde pública estão funcionando e observamos um regresso à normalidade, conforme algumas pessoas estão gradualmente retornando.

Algumas pessoas não se sentem ainda suficientemente seguras para regressar, mas voltam por pouco tempo para checar em que estado estão as suas casas e suas terras de cultivo. Depois, elas retornam aos locais onde procuraram refúgio. No entanto, a nossa casa é sempre a nossa casa, por isso, apesar das incertezas, muitas preferem tentar voltar aonde têm algo, não importando quão pouco isso seja, em vez de ficarem num local de trânsito ou de reinstalação em condições muito precárias. Observamos pessoas que até vendem os celulares para pagarem o transporte de retorno. Elas são movidas pela esperança.

Ao mesmo tempo, focos de violência provocam deslocações repentinas. Por vezes, um rumor é o suficiente para desencadear o desespero. A violência é tão imprevisível que as pessoas partem apenas com a roupa do corpo. A situação é extremamente volátil, com pessoas se deslocando em direções diferentes, tanto em fuga da violência como ao regresso às suas casas. Isto exige que a nossa equipe seja reativa, uma vez que é importante que consigamos acompanhar as pessoas para garantir a elas um mínimo de serviços de saúde e humanitários durante a fuga, deslocações e/ou regresso. Mas temos de assegurar que o fazemos de uma forma que não influencie o processo de decisão das pessoas neste contexto volátil.

 

Como o conflito está afetando as pessoas?

Pode não ser uma emergência médica, mas é certamente uma emergência humanitária. As condições médicas que vemos são normalmente básicas. A ajuda humanitária está concentrada em pontos mais estáveis no Sul da província, perto da capital, Pemba. Porém, em áreas vastas ao norte, nenhuma ou poucas organizações de assistência humanitária estão presentes. Isto faz com que tenhamos de diversificar as nossas atividades e nos adaptarmos.

Quando encontramos um grupo de pessoas deslocadas nessas áreas, frequentemente elas têm muito pouco, então também fornecemos acesso à água potável, a alimentos e a abrigos ou materiais para a construção de casas. Já precisamos até comprar roupas e chinelos para pessoas que tinham caminhado durante longos períodos de tempo. Não se pode falar apenas sobre malária com pessoas que perderam tudo.

Estas pessoas têm vivido em meio à vegetação há meses, algumas mesmo mais de um ano, em áreas densas e inóspitas. E chegam num estado de muita necessidade de cuidados, pois  comiam apenas aquilo que conseguiam encontrar pelo caminho: plantas, vegetais, alguns animais que caçavam. São habitualmente pessoas idosas, com desnutrição, anemia e com as roupas praticamente destruídas.

Em certos casos, algumas pessoas estiveram sozinhas durante muito tempo. Se elas têm alguma doença crônica como tuberculose ou HIV, que é altamente prevalente em Moçambique, encontram-se em um estado muito difícil porque o seu tratamento foi interrompido. Vemos também muitos problemas respiratórios e de hipertensão.

Além destas condições médicas complexas, as pessoas estão também sofrendo com transtornos psicológicos. Quase todas as famílias passaram por experiências traumáticas. Alguns de nossos pacientes estão tão fragilizados que nem sequer conseguem ter contato visual com outras pessoas. Testemunharam ou sofreram violência, ou perderam as suas casas. Todas estas experiências tiveram um efeito muito negativo na sua saúde mental. Algumas pessoas também perderam o contato com familiares. Encontramos frequentemente crianças órfãs, que viram os pais morrer ou que foram raptadas por grupos armados, e também pais e mães que não sabem do paradeiro de seus filhos.

 

O que MSF está fazendo?

 Em Mueda, providenciamos apoio técnico ao hospital rural e dirigimos um posto de saúde no local principal onde se encontram as pessoas deslocadas. Também gerimos um ponto de água e fornecemos outros pontos de água, uma vez que a falta de acesso à água potável tem se agravado de forma significativa. Temos uma equipe de obstetrizes que monitorizam as grávidas e uma equipe de veículos em alerta para transferir casos graves para o hospital. Além disso, distribuímos kits de primeira necessidade às pessoas recentemente deslocadas, fazemos promoção de saúde e, agora que a época das chuvas está se aproximando, realizamos muito trabalho de prevenção à propagação de doenças como a cólera e a malária. Também providenciamos apoio psicológico com a nossa equipe de saúde mental.

Fora de Mueda, temos clínicas móveis em vários locais onde distribuímos kits de primeira necessidade. Disponibilizamos dois tipos: um a que chamamos kit de trânsito, que é mais leve e inclui alimentos e utensílios básicos para pessoas que estão em movimento. O outro é para quem já se instalou em um lugar, que é muito mais completo e permite às pessoas montar um abrigo: inclui lonas, comida para várias semanas e outros materiais.

Também prestamos apoio a uma rede de 70 agentes de saúde comunitários que fazem parte do Ministério da Saúde. Estas pessoas são essenciais porque trabalham em áreas rurais garantindo o acesso a tratamento para doenças comuns como a malária, diarreias, ou identificando casos de desnutrição. Elas nos permitem estar em contato próximo com as comunidades. Através destes profissionais essenciais, temos conhecimento quase imediato de quando ocorrem deslocamentos repentinos de pessoas e, em seguida, preparamos uma avaliação e respondemos dentro de 24 horas se as condições de segurança permitirem.

MSF atua em Moçambique desde 1984. Em Cabo Delgado, as nossas equipes atuam em projetos em Metuge, Macomia e Palma, e mantêm uma estrutura de vigilância em Montepuez, onde encerramos as nossas atividades médicas em outubro passado.

Compartilhar
Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on print