“Trabalhar nesse contexto faz a gente entender que não tem controle de nada”

Gabriela Schaffer, enfermeira obstetra de MSF, conta como têm sido sua primeira experiência em projeto atuando em Bentiu, no Sudão do Sul.

Engraçado como temos tanto para relatar e ao mesmo tempo não sabemos por onde começar. Espero que os relatos de uma enfermeira obstetra em seu primeiro projeto com MSF não sejam tão confusos quanto os sentimentos dentro de mim. Não me levem a mal com a palavra “confusos”, não é algo ruim, apenas intenso.

Prazer, eu sou Gabriela Schaffer, enfermeira obstetra e atualmente estou no Sudão do Sul, atuando como gestora de atividades de enfermagem na Naam Clinic, em Bentiu. Minha permanência no projeto será de 9 meses e já estou aqui há mais de 2 meses.*

Quando a gente é selecionado para um projeto, há sentimentos de medo, ansiedade e muita excitação. Algo que você queria muito está finalmente acontecendo, mas ao mesmo tempo, tentamos ser realistas e entender que muitas vezes os cenários serão difíceis. Mesmo nos preparando, quando a gente chega à realidade é ainda mais impactante. O Sudão do Sul é o país mais novo do mundo, tudo extremamente precário e em estado de tensão por conta dos conflitos.

Posso dizer que, desde o momento que cheguei, fui extremamente bem recebida por todos. Mesmo com todas as dificuldades, as pessoas mantêm a cabeça erguida e sorriem ao te encontrar. Após diversos briefings, finalmente cheguei na cidade do projeto e fui conhecer a equipe. Entre saudações entusiasmadas e muita empolgação, fiquei feliz de perceber que a equipe estava muito animada com a minha chegada. Agora, era hora de arregaçar as mangas, tentar entender as atividades e entrar na rotina de trabalho.

O trabalho realizado pela Naam Clinic é focado em atendimento a sobreviventes de violência sexual, violência de gênero e violência doméstica (GBV, SGBV e IPV), além disso, também atuamos com Saúde Sexual e Reprodutiva, realizando consultas direcionadas a Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), Infecções Urinárias e Planejamento Reprodutivo. Como MSF é uma das poucas organizações que realiza o chamado “Comprehensive Care” (Cuidado integral), nosso atendimento às survivors (sobreviventes) é realizado em duas etapas, o cuidado médico e a parte de saúde mental.

Minha função aqui é gerenciar as atividades realizadas pela equipe de obstetras/obstetrizes, enfermeiros/as e assistentes durante os atendimentos. Em alguns casos, também participo das consultas, sempre acompanhada de alguém para poder me comunicar corretamente com as pessoas, pois muitos dos/as pacientes não falam inglês, apenas Nuer, uma das muitas línguas aqui do Sudão do Sul. Diariamente, realizo desde o trabalho administrativo, upload de dados estatísticos, contagem de estoque da farmácia, manejo de medicações, consultas, triagem e exames laboratoriais até encontro com líderes da comunidade e parceiros de MSF para estabelecer os caminhos para referência e continuidade do cuidado após o nosso atendimento.

Após um mês de trabalho intenso, percebi que estava beirando a exaustão e precisei reavaliar a rotina de trabalho e as prioridades das tarefas. Nem tudo é urgente, e por mais que eu queira desenvolver as atividades da melhor maneira possível e doar o nosso máximo para a comunidade, precisei achar um limite para que pudesse continuar saudável. Acho que, por conta do contexto, nós acabamos nos jogando no trabalho para poder “fazer algo” e “ser útil”, mas não é só essa a nossa função aqui. Precisamos encontrar momentos de interação leve com a equipe, com a comunidade e com a vida. Mergulhar nas histórias e na cultura, sorrir com as crianças que gritam e acenam para você, ceder seu tempo para ouvir relatos de outros tempos e, honestamente, somente ser presente. Isso já é mais do que muitas pessoas aqui já tiveram a oportunidade de ter.

Acho que, para mim, poder perceber o quanto a comunidade é grata pela nossa presença aqui faz tudo valer a pena. Observar os sorrisos e as risadas quando eu tento falar um Nuer rústico ou quando explico um pouco sobre o Brasil e os hábitos dos brasileiros, completamente diferentes. Perceber a gratidão de uma mulher quando eu peço permissão para tocá-la e quando a olho nos olhos para entender a melhor maneira de ajudá-la, ou quando recebem o tratamento adequado, apesar das circunstâncias difíceis. Quando tiramos tempo para ouvir e compreender.

Cada dia é uma surpresa. Trabalhar nesse contexto faz a gente entender que não tem controle de nada. A calmaria de hoje pode não existir amanhã. Acho que, por isso, os vínculos que criamos são muito rápidos e intensos, as pessoas com quem convivemos se tornam importantes muito rapidamente porque, no fim das contas, elas se tornam a nossa família, e estamos juntos todo o tempo. Nesse pouco tempo aqui, já me despedi de algumas pessoas queridas, mas já recepcionei outras tantas. No fim das contas, MSF é isso: trabalho, doação, intensidade e mudança. Pessoas novas sempre chegando e outras sempre partindo para novas aventuras.

* Data referente ao momento da elaboração do diário de bordo, realizada em agosto de 2022.

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