Trabalhando em meio a um cenário de destruição e esperança

Depois de contar sua chegada a Mossul, a pediatra Junia Cajazeiro relembra histórias de pacientes

Trabalhando em meio a um cenário de destruição e esperança

Uma história que me marcou foi a da mãe de um paciente que infelizmente faleceu. Ela implorava pela vida de seu filho. Era filho único, após sete anos tentando engravidar. O bebê estava terrivelmente enfermo. Fizemos de tudo, mas não pudemos melhorar sua condição. A mãe chorava no chão e eu não conseguia consolá-la, pois mal sabia falar obrigada em árabe. Eu apenas agachei e a abracei. Ela me olhou, respirou fundo e disse: thank you, em inglês mesmo. Caí em lagrimas.

Outra mãe era da etnia yazidi. Essa etnia já sofreu muita perseguição. Eles têm muito medo de vir ao nosso hospital em Mossul. Mas essa mãe enfrentou todo o medo. Seu bebê era um recém-nascido de 1,4kg. Ele esquecia de respirar. Tratamos sua infecção, demos remédio, esperamos ele aprender a sugar o leite. E essa mãe foi ficando. Quando o bebê dela melhorou de quase tudo, olhei para ela e disse: você pode voltar para seu hospital de origem, agora eles conseguem terminar o tratamento do seu bebê. Ela me olhou, sorriu e disse: não, eu quero ficar aqui até ir para casa. Ah, que sorriso delicioso! Obrigada pela confiança.

E o último caso: Albaedah. Nasceu prematuro, estava em outro hospital, mas foi transferido porque o hospital em que estava pegou fogo. Precisou tratar várias infecções, demorou a conseguir comer, esteve em estado grave pelo menos umas três vezes. Mas foi embora para casa, mais de um mês depois da sua entrada no hospital. Sua mãe era tão cuidadosa. Eu via esse bebê toda semana. E, por fim, a mãe dele e eu já nos comunicávamos. Linguagem de sinais e amor. Eu já me entendia com ela 70% das vezes. Minha tradutora brincava falando que eu já entendia árabe.

Os profissionais da nossa equipe trabalhavam arduamente, ávidos por aprender, por melhorar, para melhorar a vida dos nossos pacientes. E eles também sofreram com a guerra. A grande maioria estava lá durante esse período. Com os dias passando, a convivência diária e a amizade crescendo, aos poucos as histórias da guerra apareciam. Apareciam numa conversa sobre o almoço de sexta-feira (que era muito farto), quando eles se lembravam que na época da guerra foram meses comendo apenas enlatados. Ou quando acontecia alguma queda rápida de energia e eles se lembravam que foram meses sem luz, no escuro. Ou quando um deles, ao me contar sobre o aniversário do pai, falou que sua casa foi bombardeada e todas as fotos e lembranças da sua infância foram destruídas.

Quanta dor, quanto sofrimento, quantas perdas. Mas isso não significa que são pessoas tristes. São sorridentes, receptivos, hospitaleiros. Era uma festa toda sexta-feira. Cada almoço maravilhoso que compartilhei com eles no hospital, bolo de despedida quando algum profissional internacional ia embora, chás que tomamos juntos, guavas (um tipo de doce) que comi com eles. Tantas boas lembranças. Tantas risadas que demos juntos.

E com o tempo e a proximidade crescendo, as perguntas tornam-se mais íntimas. É muito engraçado como as diferenças culturais não são nada além de motivo de risada; quando o diferente não é sinônimo de preconceito, mas de respeito e curiosidade. As mulheres me perguntavam sobre o biquíni brasileiro, o carnaval e o samba, sobre como era namorar no Brasil. Eu perguntava a cor do cabelo delas e pedia para me ensinarem a colocar o véu e a dançar músicas iraquianas. Era uma festa! Que momentos deliciosos. Foram três meses de muita troca e muito aprendizado. Ah, e sim, me dei muito bem com o irlandês e os demais profissionais internacionais: minha família Mossul.

Shukram*, Iraque. Shukram, Mossul. Que a esperança nos olhos de vocês se transforme em dias melhores. Inshallah**.

 

 

 

* Obrigada, em árabe.

** Inshallah é uma expressão muito recorrente no mundo árabe que se refere à esperança de que algo aconteça. Deu origem à expressão “oxalá”.

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