MSF não é só saúde

Foto: Ahmed Kaka/MSF

Como engenheiro, atuei na posição de gerente biomédico no Iraque por 5 meses, país que enfrentou e enfrenta diversos conflitos. Minha responsabilidade era organizar, instalar e gerenciar os equipamentos médicos do hospital de MSF montado durante a guerra que transacionava para uma unidade capaz de atender cirurgias ortopédicas. 

Era bem comum durante a manhã os profissionais locais se reunirem para tomar café. Eles se reuniam em grupos, cada um era responsável por levar o café em um dia, no caso pães e ovos, que eram fritos na hora. Uma rotina que aproximava mais os colegas de trabalho, que eram vistos entre eles como irmãos. Mas uma coisa sempre me chamava atenção, a pouca presença de mulheres trabalhando no hospital. No departamento logístico, havia somente uma supervisora, essa sempre arrumava e limpava as mesas antes e após o ritual matinal. Quando havia momentos nos quais eles se reuniam para tirar fotos, ela era quem as tirava. 

Em uma tarde, essa mesma supervisora foi ao setor biomédico em busca de um dos técnicos. Informei a ela que ele havia saído e me disponibilizei para ajudá-la. Ela puxou uma cadeira e me contou que é engenheira biomédica, me mostrou os projetos que desenvolveu, que iam desde projetos residenciais a incubadoras neonatais, além de suas habilidades na cozinha com pratos e bolos incríveis. Ela me contou da sua rotina diária, na qual chega em casa e tem que cozinhar para a família toda, e que vai dormir uma da manhã (tradicionalmente os filhos ficam na casa dos pais mesmo após casados, então é comum casas com 10, 15 integrantes) e acorda às cinco da manhã para ir trabalhar. Com um sorriso em seu rosto, me falou que diversas pessoas a olham estranho porque ela não deseja ficar em casa cuidando da família, além de optar por ter tido somente dois filhos, indo contra a tradição presenciada pela maioria das mulheres de Mosul. Me contou da dificuldade em encontrar emprego, e o quanto é grata por MSF estar ali. Com um sentimento de orgulho em sua voz, ela me falou que dirige (prática não bem-vista para as mulheres no país) sem medo na rua e botou como condição para seu casamento o marido deixá-la trabalhar, afinal, em suas palavras: “Por que não posso, só porque sou mulher?”. E antes de sair daquela sala, ela finaliza: “Chefe, você deve saber dos acontecimentos em Mosul, vários aqui perderam amigos e familiares, mas a gente não pode desistir. Não podemos desistir da família, do relacionamento, do trabalho… Não podemos desistir da vida”. Eu, sem palavras para tudo aquilo, só sorri e a parabenizei. Ao sair da sala, ela agradeceu profundamente por tê-la escutado e me convidou para almoçar com os outros colegas de trabalho pois ela queria me mostrar a culinária iraquiana.

Lidar com uma realidade tão diferente da minha realidade e ter contato com uma cultura tão distinta da minha me gerou alguns questionamentos. 

Os diversos profissionais internacionais móveis que ali trabalham, carregam consigo suas culturas e a curiosidade em entender como é o lugar do outro de forma mútua. Logo, é bem comum as pessoas terem interesse em saber como é a vida no país de origem e, nesse momento, uma semente é plantada. 

Rodrigo Vialle é engenheiro e atuou como gerente biomédico no projeto de MSF no Iraque por 5 meses, desde 2020. Nesse ano, MSF respondeu a inúmeras emergências de saúde em todo o Iraque, oferecendo cuidados a milhares de pessoas deslocadas pela guerra contra o grupo do Estado Islâmico, manifestantes feridos em violentos confrontos com as forças de segurança e pacientes com COVID-19. Também apoiamos o sistema nacional de saúde, que ainda se encontra nas fases iniciais da reconstrução, preenchendo lacunas nos cuidados de saúde essenciais.

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