Sonho Interrompido

Foto: MSF

A coordenadora de recursos humanos de MSF, Ana Bekenn, conta a história de uma profissional local que atuou em sua equipe em meio à guerra na Ucrânia.

Aleksandra* tinha 20 e poucos anos quando saiu da Ucrânia durante a faculdade para estudar um ano de mandarim na China. Jovem, cheia de energia e apaixonada por novos idiomas, ela sempre gostou de tudo que fosse desafiador e tudo o que fosse internacional. Ela retornou à Ucrânia e começou a trabalhar como intérprete em MSF por acreditar no propósito da organização. Na época – antes da guerra que interrompeu seus sonhos – MSF já tinha projetos no país que tratavam pacientes com HIV e tuberculose.

Motivada e ambiciosa, seu plano era voltar a estudar fora do seu país posteriormente. Esses planos foram inicialmente pausados por conta da pandemia da COVID-19 e depois destruídos pela guerra que acontece no país desde 24 de fevereiro desse ano.

Aleksandra* segue trabalhando com MSF. O ritmo de trabalhou se intensificou desde fevereiro e entrou em modo de emergência. Assim como todos os ucranianos da equipe, ela se dedica intensamente à rotina da organização humanitária no país, que aumentou suas atividades médicas no extenso território ucraniano. Uns dos recentes e inovadores projetos é o trem com capacidade de UTI que leva pacientes afetados direta ou indiretamente pela guerra, do Leste para o Oeste do país, criando espaço para hospitais mais perto do fronte. Além disso, MSF tem projetos de saúde mental para vítimas da guerra (contexto onde muitos sofrem com abusos físicos, sexuais e/ou tortura) e ainda segue operando alguns dos projetos regulares que já existiam antes, como o destinado a pacientes com tuberculose.

Eu passei dois meses na Ucrânia e tive o prazer de ter tido a Aleksandra* na minha equipe. Na minha volta ao Brasil, várias vezes as pessoas me perguntaram como está a situação do país. A genérica palavra “situação” se transforma e se resume à Aleksandra* e às outras pessoas jovens que formam a sua geração.

Pior do que não realizar um sonho, é uma ter a etapa anterior deletada. Isto é, nem sequer poder sonhar. Não poder sonhar porque a infraestrutura do seu país está sendo destruída. Não poder sonhar porque sua família está em risco e você precisa pensar nisso primeiro e somente.

Foi num sábado que percebi que a Aleksandra* estava mais apreensiva. Dessa vez, não havia risadas nem amenidades que serviam de distração, havia cansaço. Ela não dormiu na noite anterior porque sua mãe, que mora em Zhytomyr, cidade natal de Aleksandra*, ligou para sua filha quatro vezes na madrugada. Uma ligação para cada bomba que caiu em Zhytomyr. Essa cidade, assim como outras atingidas nesses meses, fica longe do fronte.

O pai de Aleksandra*, em seus mais de 50 anos, serviu na noite anterior na mesma base militar que foi alvo desses ataques aéreos em Zhytomyr. Ele estava seguro.

Eu não faço análise política nem tento previsões, eu anseio. Espero que a geração da Aleksandra* consiga voltar a sonhar e – quando essa guerra terminar – realizar o que sonhou.

* Nome alterado para proteção.

 

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