Os muitos outros lados da mesma viagem

Estou no continente africano há dois meses*, no meu segundo projeto com Médicos Sem Fronteiras (MSF). Desta vez, o objetivo de MSF é apoiar o serviço de saúde de Moçambique no manejo de Doenças Tropicais Negligenciadas (DTNs). Aqui, na Província de Nampula, no nordeste do país, essas doenças são endêmicas, isto é, possuem uma alta incidência na região: muitas pessoas vivem com esquistossomose , filariose linfática (elefantíase e hidrocele) e sarna, por exemplo, além da malária.

Tenho experimentado neste projeto algo completamente diferente do que vinha fazendo em quase 37 anos de profissão. Sou médica nefrologista. Durante toda a vida, atendi pessoas portadoras de doenças crônicas, como diabetes, hipertensão arterial e insuficiência cardíaca. Atender a população jovem de Moçambique, com as doenças tropicais que mencionei, tem sido um desafio. São doenças chamadas “negligenciadas” pois estão quase ausentes da agenda global de saúde e, por isso, são dificilmente diagnosticadas, controladas ou erradicadas pelos serviços de saúde locais.

É por isso que MSF está aqui. Diariamente, percorremos horas de estradas de terra batida para alcançar as comunidades que tanto necessitam de cuidados de saúde. Acompanhamos o atendimento de 100 pessoas com sarna, distribuímos medicação trazida do exterior, acreditamos no alívio daquelas crianças lindas, de olhar profundo, sorrisos maravilhosos e choro fácil. Atendemos 100, no outro dia chegam mais 200. Escolho trocar frustrações por desafios, cansaço por abraços, distâncias por acolhimento. Há muito amor envolvido em cada dia, e acredito no amor como instrumento de mudanças.

É esse o contexto e são essas as atividades que venho executando diariamente junto à minha equipe, composta por cerca de 54 profissionais moçambicanos e 12 profissionais de outras nacionalidades, no projeto MSF no distrito de Mogovolas, província de Nampula, em Moçambique. Mas estou dando voltas porque o que quero contar para os meus amigos, meus ex-alunos, minha família e para todos os potenciais doadores ou futuros colegas de MSF é algo especial, que vivi hoje na comunidade de Murirrimue, a 30 Km de Nametil (onde está a base do projeto).

A história começou numa tarde fria de 1986, no Hospital Municipal de Passo Fundo, no Sul do Brasil, onde eram atendidos pacientes do antigo Funrural (Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural). Àquele tempo, o SUS ainda não existia, e as condições de atendimento no hospital eram primárias. Eu tinha 16 anos e iniciava, por aqueles dias, minha viagem na Medicina, num estágio oferecido aos iniciantes. Era o dia em que uma adolescente de 13 anos, apavorada e sozinha, daria à luz um bebê que ela não havia desejado: o primeiro parto ao qual assisti como estudante, em minha formação como médica.

Nada sei sobre as circunstâncias da gravidez, tampouco conheço detalhes da história. Sei que o bebê seria entregue à adoção após o parto que estava em curso quando cheguei à sala. As cenas que se seguiram, nunca mais esqueci. A menina, ao sentir as dores das contrações, chorava muito e chamava por sua mãe. Foi uma cena muito violenta, apesar dos cuidados da obstetriz e do médico que foi chamado com urgência. O bebê nasceu, com muito sofrimento, fórceps, vácuo, dor. Eu nunca mais quis assistir a partos.

Essa experiência traumática de parto, aliada à vontade extrema de ser boa médica, levou-me a atender muitas pessoas nos momentos finais de suas vidas, através dos cuidados paliativos, que sempre foram muito gratificantes para mim. Costumo dizer, me apropriando da canção, que “chegar e partir são dois lados da mesma viagem”. Nascer e morrer são dois lados da mesma viagem, que podem envolver medo e desejo, expectativa e anseio, por vezes dor e tristeza. Em ambos lados, é bom estar acompanhado por quem tem amor e respeito. Sempre é bom ter quem cuide, ao lado de quem precisa de cuidados. Sempre é gratificante ser médica quando a gente está junto de quem precisa de cuidados de saúde. Cuidar e ser cuidado são, também, dois lados da mesma viagem.

De volta a Murirrimue e ao centro de saúde onde eu estava hoje pela manhã, atendendo crianças com malária e sarna. Logo ali, na sala contígua, fica a sala de parto, onde eu já havia entrado algumas vezes para ver os bebês recém-nascidos que tanto me encantam, encontrando, a cada vez, alguém prestes a dar à luz ou no pós-parto imediato.

Hoje, entrei, e a obstetriz me pediu ajuda. O parto já estava adiantado. A obstetriz da comunidade faz cerca de quatro partos por dia, há mais de 20 anos. Certamente, não precisava da minha ajuda para saber o que fazer. Mas, enfim, a obstetriz queria a minha presença.

Olhei ao redor, a parturiente na cama, capulanas** no lugar de lençóis, a obstetriz, uma ajudante e eu. Eu disse, em voz calma e pausada, que tudo estava bem: a mãe parecia bem, estável e colaborativa, sem sinais de sangramento. A bolsa rompeu na dinâmica do parto, a cabecinha se insinuou… a obstetriz disse poucas palavras, e a mãe, em silêncio, fez muita força. Eu me aproximei, fiz um gesto carinhoso na sua testa, disse alguma coisa acolhedora. Ela buscou minha mão e a segurou o tempo todo, determinada a me ensinar a grande lição: “Atenção, médica! Quando ‘não há nada a fazer’, deixe-se estar. Fique e se instale junto com sua paciente no acontecimento-parto”. Ficamos todas… e a bebezinha nasceu bem. Uma menina grande e forte que fez tudo o que se deve fazer ao nascer.

Percebo, agora, escrevendo, que éramos todas mulheres ali. Uma viagem feminina, um lado feminino da viagem de nascer. Outras mulheres entraram, trouxeram mais retalhos de capulanas, secaram a cama, o corpo da mãe, limparam a bebê, acomodaram a mãe e a filha em capulanas limpas, levaram a placenta, amarraram na cintura da mãe uma tira de capulana e, nessa tira, outra faixa dupla, comprida, para servir de absorvente.

Assisti a tudo comovida, pensei imediatamente que completava uma volta ao redor do meu mundo de médica. De Passo Fundo aos 16, a Nampula aos 59, outros dois lados da mesma viagem.

Milhares de bebês nascem no planeta a cada dia , são muitos lados de muitas viagens. Como garantir que cada um dos nascimentos venha acompanhado de cuidado, atenção, respeito, amor? Mais uma vez, me parece simples compreender: se cada um de nós der um pouco de nosso tempo, de experiência, de riqueza, de presença, muitos outros lados de muitas outras viagens de chegada e partida da vida poderão ser mais alegres. Acredito no amor como potência transformadora.

*Diário de bordo escrito em julho de 2023. 

**Capulanas são tecidos estampados de algodão bastante tradicionais em Moçambique.

 

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