O maior legado que podemos deixar

A gerente de comunicação Gabriela Roméro conta como foi acompanhar a resposta de MSF à COVID-19 no Brasil

O maior legado que podemos deixar

Trabalhar com ajuda humanitária no seu próprio país tem um gosto agridoce. Por um lado, é gratificante ver em primeira mão o apoio necessário chegar a quem precisa, ainda mais quando a identificação com quem atendemos é tão mais imediata. Por outro, justamente por nos sentirmos mais próximos, tudo parece nos tocar de forma mais direta – e isso inclui a dor das pessoas que encontramos.

Em quatro meses, visitei quatro estados e sete municípios para acompanhar como gerente de comunicação as atividades de Médicos Sem Fronteiras (MSF) em resposta à COVID-19 no Brasil. Foi puxado. Isso significou acompanhar de perto uma crise de saúde sem precedentes na história recente em locais bastante remotos, onde o acesso a instalações médicas encontra barreiras geográficas e sociais. Uma doença para a qual a princípio ninguém no mundo possuía anticorpos não atinge os mais vulneráveis por razões biológicas; é a falta de acesso a cuidados adequados que mata de forma desproporcional.

Chegamos depois do pico de contaminações em muitos dos locais em que atuamos. Do ponto de vista de comunicação, isso significa ouvir relatos sobre acontecimentos passados. É uma espécie de análise forense do sofrimento humano. Ouvi principalmente histórias de profissionais de saúde locais que viram suas rotinas de trabalho se tornarem um pesadelo, com um grande número de pacientes chegando de uma só vez, necessitando de cuidados que eles não eram capazes de oferecer. E isso acontecia ao mesmo tempo em que esses profissionais viam seus colegas precisarem ser afastados por ficarem doentes e temiam levar o vírus para dentro de suas próprias casas.

Em algumas cidades, trabalhamos diretamente no atendimento médico, tanto em hospitais locais quanto em instalações de saúde montadas por MSF. Porém, no momento em que a demanda começava a estabilizar, o que podíamos oferecer àquelas equipes de mais efetivo era treinamento. Foi isso que fizemos. O trabalho desenvolvido por esses profissionais na linha de frente em locais tão remotos e com tão poucos recursos foi gigantesco. O maior apoio possível seria prepará-los para situações semelhantes àquela, fosse uma segunda onda de contágio ou uma epidemia futura. Assim, teriam o conhecimento necessário para agir de forma mais segura e mais eficaz.

O treinamento é um legado de longo prazo e por isso mesmo é muito difícil de ser quantificado (ou mostrado) de forma imediata. E, como é difícil mostrá-lo, é muitas vezes um desafio para a comunicação dar a dimensão da sua importância. Algumas vezes, eu mesma comecei a me perguntar sobre o impacto que estávamos deixando.

Depois de dois meses no estado do Amazonas, segui para Roraima, onde MSF mantém um projeto de atenção de saúde primária e saúde mental – voltado principalmente para migrantes venezuelanos – desde 2018. Lá, como em muitos de nossos projetos ao redor do mundo, tivemos que adaptar nossas atividades para responder à COVID-19. Foi com esse intuito que começamos a trabalhar como parceiros no hospital de campanha montado em Boa Vista, capital do estado.

Numa visita a esse hospital, tive que passar pelo vestiário feminino, onde devia trocar minha roupa e colocar os equipamentos de proteção individual. Antes que eu tirasse meu colete, uma mulher veio em minha direção apontando para a logo vermelha de MSF no meu peito. “Você trabalha para Médicos Sem Fronteiras?”, ela me perguntou. Sem entender o motivo da pergunta, respondi que sim. Letícia – esse é o seu nome – me explicou por que havia reconhecido o símbolo. Ela havia feito parte de uma das primeiras turmas de agentes de saúde indígenas treinados por MSF em 1992 na Amazônia. Trabalhou com a organização em nosso projeto que se estendeu por 10 anos no combate à malária na região. Depois disso, se tornou assistente social. No hospital de campanha, ela trabalhava ajudando como intérprete os pacientes indígenas. “Se hoje estou trabalhando aqui”, ela disse olhando nos meus olhos, “é por causa de MSF”.

Letícia provavelmente não tem ideia do quanto o nosso encontro foi importante para mim. Depois dele, tudo passou a fazer sentido. Ele me deu o fôlego imediato para encarar mais um mês acompanhando nossas atividades no Mato Grosso do Sul e em São Paulo. Me deu também a certeza de que treinamento é o melhor legado que podemos deixar. E, talvez mais do que tudo, a convicção de que ainda há muitas histórias a serem contadas.

 

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