“No bunker, frequentemente escutávamos barulho de ratos”

Foto: Arquivo pessoal

Responsável pela logística de MSF em Kyiv, na Ucrânia, Tanain Villela Aldabalde relembra os três meses em que atuou em meio à guerra.

Saí do Rio de Janeiro em 2007, quando ganhei uma bolsa para estudar na Espanha. Desde então, só voltei por um breve período, em 2014. Nessa época, eu já trabalhava em organizações humanitárias, sempre nas áreas de logística e gestão de projetos. Em 2017, por exemplo, estava no Sudão do Sul – mais especificamente, em Maban, um condado na região do Alto Nilo. O país africano enfrentava a fome e uma onda de extrema violência entre grupos étnicos. Foi minha experiência em situações como aquela que me permitiu ir à Ucrânia. Você não pode viajar para um país em guerra sem ter o mínimo de traquejo. Do contrário, acabará provocando algum dano ou se tornando mais uma vítima do conflito.

Na Ucrânia, integrei a primeira equipe que o escritório espanhol de Médicos Sem Fronteiras mandou para lá. Durante os três meses que permaneci no país, viajei muito. Devo ter percorrido uns 12 mil km. Nossa meta inicial era possibilitar a entrada de remédios e outros suprimentos pela cidade de Uzhhorod, na fronteira com a Eslováquia. Depois que cumprimos a missão, fomos para Ivano-Frankivs’k, perto de Lviv, onde mapeamos as necessidades locais e levantamos o número de deslocados que passavam por ali. Deslocados são aqueles que fogem de uma região para outra, mas sem sair do país. De Ivano-Frankivs’k, partimos em direção a Kropyvnytskyi, já beirando as frentes de combate.

Numa guerra, para você se manter física e mentalmente saudável, convém adotar alguma rotina. Eu procuro acordar cedo, ver as notícias da manhã e começar logo o expediente. Também busco fazer contato diário com os colegas em trânsito para checar se estão seguros. O problema é que, em zonas de conflito, tudo muda bem rápido, o que altera completamente o nosso planejamento. Um dia, você encontra 100 deslocados numa determinada região. Dois dias depois, o cenário já se transformou. Se você não tiver jogo de cintura, vai enlouquecer. No meio do caos, o mais importante é não perder de vista a nossa tarefa principal: criar um impacto positivo na vida das pessoas em situação de vulnerabilidade e aliviar o sofrimento delas.

Sempre que chegávamos a um lugar novo, identificávamos os bunkers dos arredores, para onde corríamos quando as sirenes tocavam, indicando o risco de ataque aéreo. Tive de aprender a trabalhar e viver dentro desses refúgios, que costumam ser extremamente opressivos e gelados. Um dos bunkers de Ivano-Frankivs’k se localiza muito perto do depósito em que estocávamos mais de 20 toneladas de remédios. De início, faltava luz no abrigo. Suas portas são de metal e têm uma espécie de escotilha. Um túnel com 1,5 metro de altura funciona como saída de emergência. Só dá para atravessá-lo se a gente estiver agachado.

Quando me refugiei pela primeira vez nesse bunker, fiquei duas horas em completa escuridão, à espera de que as sirenes parassem de soar. Fazia bastante frio lá dentro, algo entre cinco e sete graus negativos. Eu estava com um farmacêutico e duas funcionárias ucranianas de MSF. Uma delas, oriunda de Kyiv (cidade que já havia sido bombardeada), parecia muito tensa. A outra, nossa motorista, demonstrava mais tranquilidade. Vinha de uma região que ainda não havia sofrido nenhum ataque. Nós quatro conversamos o tempo inteiro, e isso ajudou a acalmar nossa colega.

Voltamos àquele abrigo tantas vezes que até instalamos luz elétrica nele. Certo dia, descobrimos um corredor largo que dava acesso a salas médicas, quartos e um refeitório, tudo desativado, provavelmente desde a Guerra Fria. O bunker cheirava mal por causa da umidade. As paredes eram imundas e esburacadas. Frequentemente, escutávamos o barulho de ratos.

Muitos ucranianos se esforçavam para levantar o astral dos que precisavam recorrer àqueles subsolos. Em outro bunker, cheguei a ver boas peças teatrais, geralmente comédias ou épicos. Era lindo observar o empenho dos artistas. Apesar de afetados pela guerra, eles não abandonavam o prazer de exercer seu ofício. Por um momento, adultos e crianças se esqueciam das terríveis dificuldades que enfrentavam.

Tive a sorte de encontrar profissionais altamente qualificados na Ucrânia, com um coração imenso e muita vontade de ajudar. Em Mariupol, por exemplo, fiz treinamentos com um médico incrível sobre como agir diante da chegada de um grande número de vítimas ao mesmo tempo, situação comum durante os bombardeios. Nos hospitais e nos campos de deslocados, conheci pessoas que perderam tudo e, ainda assim, cultivavam a esperança. Também havia os que negavam a realidade e, por isso, necessitavam de ajuda psicológica.

Quando imaginamos um país em guerra, o que nos vem à cabeça são explosões, ataques aéreos e batalhas terrestres. No entanto, fora das áreas de combate, a vida mantém certa normalidade. As pessoas fazem questão de continuar trabalhando, cozinhando ou indo a restaurantes, bares e cafés. Na Ucrânia, a gente nota isso principalmente em cidades que receberam muitos deslocados. Vários deles, ao se fixarem em regiões mais seguras, logo tratam de retomar atividades banais, como caminhar pelos parques ou pegar sol numa praça.

A população de algumas cidades ucranianas triplicou por causa do conflito. Em consequência, a realidade desses lugares mudou totalmente. Pouco antes de deixarmos o país, estivemos em Bobrynets pela segunda vez. É uma cidade pequena e relativamente tranquila, onde inúmeros deslocados encontraram guarida. Fomos até lá para entregar alimentos, cobertores, toalhas e produtos de higiene. Na nossa primeira visita, fazia muito frio, e um bombardeio acabara de ocorrer perto dali. Por isso, não havia quase ninguém nas ruas. Quando voltamos, já na primavera, a cidade estava muito florida, e os agricultores doavam parte das colheitas para os deslocados. Uma família me hospedou por algum tempo. Todas as noites, mal eu retornava do trabalho, exausto, as crianças da casa pulavam sobre mim. Queriam jogar videogame ou brincar com os cachorros. Se as sirenes tocassem, descíamos juntos para o abrigo subterrâneo.

Mesmo nas cidades onde não há combate, é possível sentir a tensão no ar. Existe o temor constante de um ataque repentino, que possa causar destruições parecidas com as de Mariupol ou Kharkiv. Por um lado, o medo é saudável, pois aguça nosso senso de sobrevivência. Por outro, deve ser controlado para que não nos paralise.

Gosto muito da comida ucraniana. Mas, em três meses, acho que consegui almoçar só umas 12 vezes, tamanha a minha correria. Não presenciei falta de alimentos nas regiões menos atingidas pela guerra. Já nos campos de deslocados, nem sempre havia comida suficiente porque, de um dia para o outro, podiam chegar 10, 50, 100, 300 ou 400 pessoas. Era muito difícil prever.

Veja na íntegra o texto publicado originalmente na Revista Piauí.

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